"Vossa Excelência Chamou", Livros Horizonte, Lisboa, 2.ª ed. 2008
Autor e Ilustrações: Júlio Borja
Tudo o que possa ter interesse saber-se sobre aquisição, manutenção, reparação, calibragem, upgrade e tuning de gatos domésticos.
[…] A questão é de fácil assimilação por qualquer português que no merecido usufruto das suas horas de lazer empastelado frente ao aparelho de televisão tenha já tido, ao longo dos anos, a oportunidade de assistir àqueles filmes de época da BBC em que há sempre uma cena na qual um mordomo cinzentão, com ar pedantolas, responde ao aristocrático tocar de sininho de uma dama de altíssima sociedade […] entrando no salão de visitas da mansão em passo marcial de pinguim emproado, pálpebras a meia-haste e a pergunta sacramental a pairar retoricamente no silêncio da sala, mesmo por baixo do nariz empinado:
“Vossa Excelência chamou…?”
Tá a ver o filme?
Pois, do ponto de vista dos gatos, passa-se exactamente a mesma coisa. Para os gatos, os humanos e os donos em particular são mordomos cinzentões e semi-descartáveis ao seu serviço, dos quais esperam que tomem permanentemente a liberdade de pensar em todas as suas necessidades e caprichos sem que seja sequer necessário chamar-lhes a atenção, até porque eles, gatos, não conseguem fazer tocar sininhos, por mais que se esforcem. […]
[…] Se, posto o que acaba de ser enunciado, ainda sobra ao leitor vontade para se dedicar de alma e coração ao mundo dos gatos, seja bem-vindo, mas não se esqueça em momento algum da regra fundamental do jogo: aí em casa, o meu amigo não passará nunca de um mero mordomo, com tantas hipóteses de ultrapassar o seu bichano na hierarquia social do agregado familiar como um servo da gleba tinha hipóteses, na Idade Média, de aspirar a comprar a pronto um castelo de 24 assoalhadas em condomínio fechado, na Baixa de Lisboa, com canhões em bronze, ponte levadiça com comando à distância, e vista para a Trafaria.[…]
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