quarta-feira, 4 de maio de 2011

Memórias e Afectos (79)

Continuação do “post” Memórias e Afectos (78)

A 7 de Outubro de 1968, depois de mais umas belíssimas férias de Verão, entrei no 2º ano do liceu. A secção do Liceu Passos Manuel em Massamá continuou a ser palco das minhas brincadeiras e dos meus devaneios.
Por qualquer motivo, que já não recordo, o aluguer da camioneta, a superprotecção que nos foi “imposta” no 1º ano, deixou de existir e os trajectos de ida e volta passaram a ser por nossa conta. “Lançadas às feras”, o risco passou a ser a “nossa profissão” e, como sempre tem acontecido ao longo dos tempos, os filhos enfrentam com naturalidade o que os pais encaram com apreensão e ansiedade. As viagens de camioneta, eliminada a vigilância, passaram a ser feitas na Empresa de Viação Eduardo Jorge (integrada em 1976 na Rodoviária Nacional…snif, snif) e, de longe, muito mais divertidas.

Foto "roubada" aqui

Claro que a diversão não se estendia aos motoristas e picas, que eram forçados a suportar o regabofe que se instalava. Recordo, com um sorriso saudoso, a nossa maroteira de eleição. Todas as janelas tinham uma persiana móvel de napa que era cuidadosamente enrolada depois de atestada de bilhetes usados que apanhávamos no chão da camioneta. Depois da armadilha montada, bastava esperar que qualquer incauto puxasse a dita e levasse com os confetti em cima. Os risos abafados depressa passavam a risada geral. Uma brincadeira parva, mas não ofensiva. Talvez por isso, nunca tivemos uma reclamação…
Como só tínhamos aulas da parte da manhã (nesses tempos longínquos não existiam aquelas disciplinas que não servem nem para encher chouriços…), íamos almoçar a casa, à nossa ou à dos avós, e havia que correr para a paragem da camioneta, à beira da estrada e sem qualquer tipo de abrigo. À época, o meu irmão, que sempre teve uma queda natural para vendedor e saltava de emprego em emprego com uma facilidade que hoje em dia é impensável, passava, ocasionalmente, por ali e dava-me boleia. A mim e a quem estivesse na paragem e morasse para as nossas bandas. Não consigo lembrar-me se, nesse tempo, ele trabalhava na Papelaria Fernandes ou nas Páginas Amarelas, mas julgo que não erro se disser que ele tinha um carro encarnado, fácil de vislumbrar ao longe, e namorava com uma rapariga (que comprava a minha simpatia com caixas de bombons) que trabalhava numa loja da Singer em Queluz.

Obviamente que ter um irmão com carta de condução e carro dava um certo sainete e popularidade entre as colegas, coisas que fazem qualquer adolescente sentir-se o máximo. Felizmente, com o passar dos anos, causar sensação deixou de me atrair e comecei a gostar de passar incógnita em quase todas as circunstâncias da minha vida…
Há situações que, mesmo com o passar dos anos, continuam vivas na nossa memória. Uma dessas passagens da minha vida teve lugar numa aula de Português. Durante a análise de um texto, que manifestamente não me deveria interessar, eu planeava o intervalo, com a colega de trás, e tão embrenhada estava a maquinar a aventura que nos esperava que não dei conta da pergunta que a professora me fez. Quando me apercebi já era tarde! A repreensão foi imediata, seguida de uma nota no caderno que dizia textualmente o seguinte: a aluna não estava com atenção à aula, conversando e rindo com uma colega. Apesar de a pergunta me ter sido posta a mim, a minha colega levou a mesma anotação no caderno porque também estava desatenta. Aqui é que a porca torce o rabo… porque a professora queria que o encarregado de educação tomasse conhecimento e assinasse… O meu pai nunca foi uma fera, mas sentir-se-ia, certamente, descontente com a minha conduta, isto já para não falar do meu constrangimento. Ia ser muito mau! Escusado dizer que o intervalo, planeado com tanto esmero, foi angustiante, e tudo por “culpa” da professora que me interrogou na hora errada (claro que estou a ser irónica…). Tornou-se, assim, urgente, engendrar um subterfúgio para sair mais airosa da situação e a solução apresentou-se-me facílima. Eu diria que ela me tinha distraído e ela, por sua vez, diria que tinha sido eu, ou seja, aos olhos paternos ficaríamos menos mal vistas. Parte do problema estava resolvido, faltava apenas a encenação final!... Lembro-me de ter subido a escada, cabisbaixa e fazendo um esforço para que as lágrimas aflorassem. A minha mãe, preocupada (tadita…), perguntou-me o que me afligia e lá contei a patranha, antecipadamente traçada, com algumas fungadelas à mistura para dar o máximo de veracidade à coisa. Deu-me na cabeça, como convém que todos os pais façam nestas circunstâncias, e aguardei ansiosa que o meu pai (o ponto máximo do problema) chegasse. A tua filha tem aí um recado da professora para tu leres – disse a minha mãe quando o meu pai chegou. Humilhada, entreguei-lhe o caderno e apresentei a minha alegação final. O meu pai nunca me castigou, preferindo sempre a reprimenda que me ficava a martelar nos ouvidos, e, mais uma vez, o “sermão do Santo António aos peixes” foi infligido (hoje, por reconhecer que me fizeram uma pessoa de bem, emprego o mesmo método com as minhas filhas e não me tenho dado mal…). Nos dias que correm é inimaginável uma cena deste calibre, primeiro porque os professores já não enviam aos pais participações deste género, a não ser que os alunos sejam rotineiros nestas faltas, senão não faziam outra coisa, segundo porque os alunos já não receiam este tipo de advertências.
Já em 1969, depois de regressarmos da semana de férias do Carnaval (18 de Fevereiro), levámos com um forte abanão para espertar. Não estou a referir-me a nenhum acontecimento escolar, este abanão que menciono passou-se na madrugada do dia 28 de Fevereiro, uma sexta-feira. Sempre tive um sono profundo, o chamado sono dos justos, e nessa noite acordei estremunhada com um abanão. Era a minha mãe que me abanava ao mesmo tempo que, apavorada, gritava e pedia a intervenção divina…Arrastou-me para o quarto do meu irmão, que dormia a sono solto, e, sem dó nem piedade, abanou-o, enquanto continuava a sua súplica religiosa… O meu pai, desorientado, juntou-se a nós. Eram duas e tal da manhã e estávamos a “viver”, na hora, mais um acontecimento dos anos 60, o famigerado sismo de 1969. Não tenho ideia se foram segundos ou minutos, mas, para mim, a terra tremeu durante uma eternidade… Depois das preces da minha mãe terem, finalmente, chegado ao centro da Terra, a casa parou de estremecer.

Nas escadas do prédio começaram a aparecer os vizinhos tão alarmados quanto nós. Enquanto eles e os meus pais trocavam impressões sobre o tremor de terra, as prováveis réplicas e se não seria melhor ir para a rua, eu aproveitava o momento alto da noite, ou seja, ver os vizinhos em traje de noite…a sério, aquele desfile de pijamas e camisas de noite foi delirante. Como não houve consenso, uns ficaram em casa e outros foram para a rua ou para dentro do carro. O meu pai e o meu irmão ficaram em casa, mas a minha mãe e eu fomos para o carro dos vizinhos do 3º Esq. Às três da manhã parecia dia, imensa gente na rua e quase toda de pijaminha. Eu também estava de pijama, mas não saí de casa sem vestir o casaco de fazenda. Quando, por volta das quatro da manhã regressámos a casa, deitei-me com os meus pais e recordo-me muito bem de ainda sentir as réplicas… a minha mãe “fazia o favor” de não deixar passar nenhuma…
Quando voltei ao liceu na segunda-feira, continuava a não se falar de outra coisa, do tremor de terra de magnitude 7.3 na escala de Ritcher, do pânico da população, enfim, da noite em que a terra tremeu…

(imagens "roubadas" gentilmente na Net)

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