quinta-feira, 14 de maio de 2009

Reservado à Indignação (10)

Andando eu muito saudosista, o passeio a Alvorninha no dia 4 de Abril alimentou em mim o desejo de saber mais sobre o burgo e sede de freguesia, que viu nascer o meu avô R. e os meus tios, irmãos da minha mãe, a única de cinco filhos que nasceu nas Caldas da Rainha.
Perguntei, por e-mail, à Junta de Freguesia se existiriam antigos registos fotográficos e onde poderia arranjá-los. Responderam-me, educadamente, que existia um livro com algumas fotos e que poderia consultar o único exemplar na sede da junta.
Não importa como, mas a verdade é que consegui arranjar o livro sobre Alvorninha, uma edição da Junta de Freguesia, datado de 1989.
Ansiosa por informação, comecei a lê-lo do início. A situação geográfica, a história, a toponímia e os edifícios notáveis, deliciando-me com a descrição pormenorizada do solar da Quinta de S. Gonçalo (a minha mãe ainda hoje fala desta casa e dos momentos agradáveis passados na companhia de uma das últimas proprietárias).
So far so good…
Quando, na página 35, deparei com as personalidades ilustres do passado e do presente, admito que tive a esperança, fundamentada, de ver naquelas páginas o nome do meu avô R.
Personalidades ilustres!...
Pesquisando estas duas palavras, para me certificar dos seus significados, pois poderia estar equivocada, concluí que para ser uma personalidade ilustre teria que reunir alguns requisitos, condição sine qua non da celebridade perfeita…
Uma personalidade é qualquer indivíduo que goza de certo prestígio pessoal, moral ou social, uma pessoa que se distingue pelos seus méritos. Se for uma personalidade ilustre terá ainda que possuir qualidades notáveis e distinguir-se, igualmente, pelo seu saber ou pelos seus feitos… Ok, achei que o meu avô satisfazia algumas destas condições! Mas foi um erro crasso… Na lista de personalidades ilustres, nem a mais pequena alusão ao seu nome…Li-os todos e fiquei de boca aberta. Ainda hoje não a fechei (até tenho receio que entre mosca…ou saia algum impropério menos próprio de uma lady…). Instintivamente, comecei a azedar!
Quase todos os ilustres eram doutores ou engenheiros. Não que eu tenha algo contra as formações, licenciaturas, mestrados ou doutoramentos, assim como não tenho nada contra as personalidades que constavam entre os notáveis ilustres. Apenas me parece um pouco pretensioso… para além de não ser uma das qualidades requeridas a uma qualquer ilustre personalidade…
Dessa lista de ilustres, quantos nasceram, de facto, na sede da freguesia, no lugar de Alvorninha propriamente dito? Dois ou três…
Alguns destes notáveis (filhos de naturais de Alvorninha), com quem tive o privilégio e a honra de brincar, nem na freguesia nasceram e nada fizeram pela terra que não os viu nascer, mas não os culpabilizo nem merecem menos consideração por fazerem parte das “celebridades locais”.
Continuei a ler o livro, apesar da irritação crescente e do meu entusiasmo inicial ter afrouxado…
Entreguei-me às belezas da paisagem pelo roteiro da freguesia, “passando” pela então chamada Estrada-Real que liga Alvorninha à Trabalhia.
Li, na diagonal, o cancioneiro popular e a cultura musical da freguesia e, mais atentamente, alguns recortes, retirados da “Gazeta das Caldas”, sobre as necessidades mais urgentes e a instrução no final da década de vinte. E li mais atentamente porque nesses anos distantes, os meus avós e os filhos viviam na Quinta de S. Mateus, em Alvorninha e senti curiosidade de conhecer as dificuldades e proveitos que existiam nessa época. É habitual dizer-se que “a curiosidade matou o gato”… Neste caso, sendo eu a curiosa, posso afirmar, com conhecimento de causa, que a curiosidade não mata mas mói…
As necessidades indispensáveis e urgentes passavam pela modernização das vias de comunicação, ligações telefónicas e construção de escolas, entre outras. Na página 110 do referido livro podia ler-se textualmente a seguinte frase “Há apenas uma escola em Alvorninha” (ano de 1927). Pensei que era desta que iriam mencionar o nome do meu avô mas enganei-me novamente…
O nome dele apareceu, finalmente, na página seguinte…
A minha alegria, porém, murchou de imediato pois o nome aparecia meramente associado ao facto de, como ajudante do registo civil, ter redigido um escrito importante para a freguesia.
O meu mau humor cresceu, fiquei possessa e foi com neste estado de espírito que continuei e acabei a leitura.
Calculo que a recolha de dados para a edição de um livro, sobre o historial de uma freguesia, não seja tarefa fácil.
Calculo que a recolha de apontamentos e sua compilação terá levado anos até que a edição fosse possível.
Não posso deixar de elogiar o empenhamento de todos os colaboradores.
No entanto, julgo ter havido uma omissão.
Não sei quem foram os responsáveis por esse esquecimento…nem tão-pouco se esse esquecimento foi propositado ou não, mas faço questão de, fazendo jus ao apelido Leal, ser fiel à verdade e enviar um e-mail para a junta de freguesia, manifestando a minha indignação pelo facto de o meu avô não constar dos “distintos” da terra…
O meu avô R., natural de Alvorninha e amigo do médico da terra, o doutor J.L. (também esquecido na lista das personalidades ilustres) teve uma botica, inicialmente instalada na Quinta de S. Mateus, residência da família, que passou, mais tarde, para a rua que fica em frente à igreja matriz.
Os mais pobres e humildes, que não tinham dinheiro para pagar os medicamentos, sabiam que podiam pagar aos poucos ou com mão-de-obra agrícola na quinta. Muitos nem chegavam a pagar…
Quantas vezes saiu de casa de madrugada para atender pedidos de mães aflitas com filhos doentes…
Quantas vezes atendeu pedidos de ajuda de familiares de ébrios e lhes aturou as bebedeiras? … Tantas que ficou com uma aversão a bêbados…
Alvorninha tem uma escola? Foi o meu avô que ofereceu o terreno!!...
Será possível que ninguém se tenha lembrado disto?
Será possível que nem uma alminha caridosa se tenha lembrado deste benemérito?
Talvez tivesse sido boa ideia os colaboradores do livro terem feito uma recolha de nomes nas lápides do cemitério… e questionassem a população sobre eles. Talvez houvesse pelo menos um habitante que se recordasse do meu avô…
Lamento profundamente que as pessoas tenham a memória curta…
Julgo, correndo o risco de parecer ou ser pretensiosa, que era legítimo o meu avô estar entre as personalidades do passado…
E, já agora, seguindo a coerência da lista de ilustres, e correndo novamente o risco de parecer ou ser presunçosa, também os meus primos, filhos de uma natural de Alvorninha, deveriam constar dela… Seria moralmente correcto!
Ora vejamos… uma professora do secundário, um engenheiro e um arquitecto?
Aprovados!...

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