Recordo que foi na adolescência que tomei conhecimento da sua existência e devo dizer que as primeiras impressões não foram nada favoráveis…
Os adjectivos foleiro e piroso, no meu ponto de vista de adolescente, caracterizavam na perfeição a loiça “hortaliça” e saloia que eu nunca na vida me atreveria a comprar ou a usar para não comprometer a minha reputação de miúda moderna…no início dos anos 70. Também as rãs, lagartos e gafanhotos que decoravam algumas peças, não eram do meu agrado, achava tudo simplesmente repugnante.
Só mais tarde alcancei o dom de apreciar as formas, a perfeição, o requinte, o brilho, enfim, a beleza única de cada uma das peças, todas elas pequenas obras de arte…
Como referi no último post desta categoria, o meu “avôzinho” R. foi aprendiz de Bordalo Pinheiro no começo do século XX.
O meu avô tinha uma veia artística que, infelizmente, não herdei.
Desenhador, pintor e ceramista foram alguns dos atributos que lhe conheci, além de tocar bandolim e ser um grande contador de histórias…
Embora as suas peças de cerâmica não tivessem o estilo e as características próprias de Bordalo, eram e são peças únicas que, por felicidade, se encontram na posse de familiares.
Pedi ao J. para me enviar uma foto de um prato feito pelo avô R. que lembro desde pirralha. Nele está representada a Lenda da Nazaré.
Segundo a Lenda da Nazaré, D. Fuas Roupinho, alcaide do castelo de Porto de Mós, caçava nas suas terras do litoral quando avistou um veado e o começou a perseguir. De súbito, ficou tudo encoberto por um denso nevoeiro que se levantava do mar. O veado (na versão popular, uma materialização do demónio) dirigiu-se para uma falésia. Quando o cavaleiro se deu conta de estar no topo da falésia, à beira do precipício, em perigo de morte, reconheceu o local. Estava mesmo ao lado de uma gruta na qual se venerava uma imagem de nossa Senhora com o Menino e então rogou, num grito desesperado, à Virgem Maria: Senhora, Valei-me!
Imediata e milagrosamente o cavalo estacou fincando as patas no pico rochoso suspenso sobre o vazio, salvando-se assim o cavaleiro e a sua montada de morte certa, enquanto o veado se precipitava para o Oceano, muitos metros abaixo.
É um prato muito especial, carregado de história, sentimentos, sensações e emoções.
Na minha mente consigo visualizar o meu avô a moldá-lo, a dar-lhe forma, com movimentos precisos. Consigo imaginar o meu avô a pintá-lo, a dar-lhe os retoques finais e a olhá-lo com a mesma ternura que se olha um filho acabado de nascer…
Não há duas impressões digitais iguais porque cada ser humano é único, tal e qual como este prato…
Único!...
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