terça-feira, 19 de março de 2013

Ternas lembranças I

Neste dia dedicado aos Pais, faço questão de divulgar dois textos, escritos pelas duas netas mais velhas, pela ocasião do segundo encontro familiar mensal (23/02/2013) de homenagem ao meu falecido pai, no ano em que comemoramos o seu centésimo aniversário.

Texto I

Quando o avô era só meu

Talvez consiga recuar na memória.

Talvez, como exercício a que me proponho, consiga ir ao encontro das memórias mais antigas e reconstruir a minha história onde entra o avô. Isto porque a história será sempre a minha, não a dele.

O que me surge não são narrativas, são apenas imagens ou quadros soltos. Posso deixar as narrativas para outro dia e concentrar-me nestes quadros, tentando-os descrever. Ainda assim serão sempre os meus quadros, fruto da minha memória. Ou imaginação.

Quadro I - a Escrita

O avô sentado à mesa da Sala de Jantar, a mesma mesa e a mesma sala dos dias de hoje. O avô, de casaco e gravata, um livro grande de capa dura e muitas linhas esquisitas que ele preenchia com números perfeitos. A caneta do avô era pesada e eu gostava de lhe pegar, tão diferente era das minhas, e de lhe sentir a textura. Não me lembro de a ter usado. Mais tarde, quando estava na 4ª classe, o pai ofereceu-me uma caneta que se assemelhava um pouco a esta. Ainda a tenho.

O avô curvava-se sobre o livro, à noite, a luz do candeeiro acesa, e ele escrevia números perfeitos.

Quadro II - a Fruta

O avô sentado, novamente a mesma mesa e a mesma sala.

O avô sentado no lugar que eu me lembro sempre dele. A fruta no fim da refeição.

Laranjas:

O avô não come as laranjas como os outros adultos que eu conheço. Ele corta uma tampa da laranja, amassa o interior com uma colher e junta-lhe açúcar, muito açúcar. Mais açúcar do que seria permitido a uma criança. O açúcar está dentro de uma caixa de plástico da «Tupperware». Toda esta operação é acompanhada da descrição verbal da mesma: o avô ensina-me a melhor maneira de comer uma laranja.

Eu, ao seu lado esquerdo, olho com grande espanto para a manobra, reverencialmente. Ter-me-á ocorrido que esta sim é uma maneira verdadeiramente especial de comer uma laranja, reservada apenas a adultos. Especiais.

Uvas:

O avô come uvas pretas como se não houvesse amanhã. Estas estão dentro de água e ele tira-as para o seu prato e vai comendo. As uvas pequeninas são separadas e são-me oferecidas. Uvas pequeninas, era especial. Eu sentia-me especial.

Estas memórias à mesa são nocturnas. Julgo que fazem parte de episódios que aconteciam nas temporadas esporádicas que eu passava na casa dos avós, quando a avó Olívia ia para Leiria. Acontecia todos os anos.

Quadro III - mãos dadas

A ir ou a regressar do Clube. Fazer o percurso em cima dos muretes e tentar saltar entre eles com a ajuda de uma ida ao colo. Talvez isto tivesse lugar aos fins-de-semana. Era de dia.

Quadro IV - Nadia Comaneci

A minha heroína dos Jogos Olímpicos do Verão de 1976.

Eu a cabriolar, saltar nos sofás e subir pelas ombreiras das portas. O avô a chamar-me Nadia Comaneci, um verdadeiro adjectivo elogioso.

Estes quadros pertencem todos a uma fase anterior à minha ida para o Rainha Santa. É o mais longe que consigo ir nas minhas memórias do avô. Foi um bom esforço tentar recordar. Compensador.


Texto II

O que mais recordo são as mãos e o sorriso. As mãos, grandes, secas e frescas, que envolviam as minhas de vez em quando e assim ficavam durante algum tempo. O sorriso, terno como só o de um avô pode ser, brindava-me muitas vezes, mesmo quando o Inverno da vida teimou em chegar. Mas como sempre, a seguir ao Inverno vem a Primavera, seja lá o que for que isso signifique.
Relembro também as noites em que dormi em casa dos avós, muito bem aconchegada no sofá grande. Adormecia com o som da televisão (mesmo estando o avô com os seus auscultadores, ouvia-se na mesma) e com o crack crack proveniente das bolachas ou tostas, acompanhadas pelo leite, que o avô comia, sentado no seu sofá. E de vez em quando lá me atirava um sorriso, por entre dentadas. E assim eu caía lentamente no sono. Um sono acolhedor como nenhum outro, como só era possível ali.
Era bom chegar a casa deles para almoçar, num dia de aulas, e dar com o avô sentado à mesa, a ler o jornal. Quando não estava sentado à mesa, eu ia sentar-me no sofá um bocadinho, acendia a televisão e esperava que ele aparecesse. E lá chegava ele. Entrava na sala, via-me e dizia “Hoje estás cá, Teresinha?”, e vinha dar-me um beijinho na testa. Nessa altura, era o único, deste lado da família, que me tratava por Teresa. Não gosto muito, mas já me habituei e não me faz diferença. Contudo, quando era dito por ele, tinha um som diferente. E eu gostava daquela sonoridade harmoniosa só dele.
Apesar de conversarmos, ainda que com alguma dificuldade, era uma comunicação que se baseava muito na troca de olhares e de sorrisos. Porque há momentos intemporais em que nada há para dizer, e apenas partilhamos a companhia com aqueles de quem mais gostamos. E é nesta convivência calada que por vezes os laços se tornam mais fortes, porque às vezes as palavras estão a mais e não deixam que aproveitemos aqueles instantes raros que pendem da vida como as gotas da chuva de um beiral. É essa a magia da vida, que poucos, muito poucos, conseguem transmitir. Era esse encanto que sentia quando estava perto dele, mas que só agora sei o que era. E ao contrário daquilo a que correntemente chamamos magia, aquela nada tinha de ilusório. Era real como nenhuma outra coisa e, tal como as melhores coisas da vida, não se via, sentia-se apenas. Aquecia o coração.

5 comentários:

João Pedro disse...

Gostei muito de ler os dois textos. É fácil imaginar a Rita a cabriolar nos sofás...

Pezinhos na Areia disse...

Ora viva!
Eu também gostei muito dos dois textos e, como deves calcular, os olhos marejaram-se de lágrimas...
Abraço

João Pedro disse...

Acho que já comentei qq coisa sobre o Tio Fernando. Nos tempos conturbados a seguir ao 25/4, e numa idade entre o final da adolescência e o início da idade adulta, com as 'leituras obrigatórias' de V.I.Ulianov e C.ª, bem presentes e 'prontas a aplicar', o Tio F foi a personificação da possibilidade de diálogo civilizado, cordato, sereno, educado, entre pessoas com 'cabeças' diferentes(?). E assim procedendo, tranquilizava-me em relação ao futuro. A democracia venceria. O futuro havia de ser nosso. De todos. Com todos os seus (e nossos) defeitos. Mas como disse Churchill (?): "A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas."

João Pedro disse...

Uma das coisas que me ocorre, muitas vezes, sobre o Tio F, é no início do verão... Sempre que nos encontrávamos nas férias, o Tio comprava umas sapatilhas de praia. Como o meu pai nuuuuunca faria nada parecido, para mim, o Tio F era rico...

Pezinhos na Areia disse...

O meu pai sempre foi, de facto, o protótipo de diálogos civilizados e sermões...
Sempre preferiu o entendimento através da troca de ideias e as repreensões com um fim moral, ao castigo corporal. Aliás, o meu pai só me bateu uma vez e, curiosamente, estávamos juntos em Mafra. Talvez te recordes...

Sapatilhas de lona quase sempre cremes ou azuis escuras. Nessa época, apesar de não sermos ricos, julgo que vivíamos acima da média. Velhos tempos...