terça-feira, 27 de abril de 2010

Tornar (volver) a Barcelona (5)

Barcelona
12 de Setembro – 2ª parte

Já lá vão quase oito meses da visita a Barcelona e ainda não é desta que termino as anotações sobre as minhas experiências e lembranças.
Entre o último “post” (no distante dia 9 de Dezembro de 2009) e este, muitas coisas aconteceram. Levei um “murro no estômago” e fiquei sem vontade de me centralizar nos três dias fantásticos que passei na capital catalã.
Retomei os registos, que me dão prazer, embora o andamento seja muito lento. Enfim, como diria a R., “um romance não se escreve de um dia para o outro” e este pequeno arquivo de memórias servirá para mais tarde recordar…

Acabei esse último “post” afastando-me, com alguma melancolia, do Park Güell. Todos os adjectivos que eu possa utilizar para qualificar este recinto tão aprazível, terão uma característica comum, aplaudir a obra harmoniosa e encantadora de Gaudí.
Parece, no entanto, que nem sempre assim foi. No livro de Carlos Ruiz Zafón, O Jogo do Anjo, a personagem principal dirige-se a uma vivenda, situada na esquina da Calle Olot com a San José de la Montaña, que contemplava como uma sentinela o fantasmagórico, solitário e sombrio recinto do Park Güell. Três anos antes, por morte de Gaudí, os herdeiros do conde Güell tinham vendido a urbanização deserta, que nunca tivera outro habitante a não ser o seu arquitecto, à Câmara Municipal por uma peseta. Esquecido e abandonado, o jardim de colunas e torres fazia agora lembrar um éden maldito.
Acredito que terá sido assim, mas, esse éden maldito transformou-se num dos locais mais agradáveis da cidade de Barcelona e num paraíso celestial e abençoado…
Prometendo a mim mesma voltar, retomámos o caminho de volta à estação de metro de Lesseps, descendo a Carrer de Larrard, rua fértil em pequenas tiendas de recordações. Fizemos questão de entrar em todas porque tudo nos chamava a atenção. Comprei resmas de postais. Hesitante, encontrava em cada um, um pormenor diferente, e a minha satisfação aumentava proporcionalmente ao monte de postais que se ia acumulando no fundo do meu saco…

O nosso próximo objectivo: a maior, mais original, mais visitada, mas inacabada obra do prodigioso “arquitecto de Deus”, o extraordinário Temple Expiatori de la Sagrada Família.
Em 1883, Gaudí assume a responsabilidade do projecto, que tinha sido iniciado um ano antes por Francisco de Paula del Villar y Lozano, alterando as plantas iniciais. A este projecto dedicou os últimos quarenta e três anos da sua vida.
Em 1884, tornou-se oficialmente o arquitecto do templo e começou a assinar os projectos de arquitectura, na altura, os planos do altar da Capela de S. José, cuja construção foi, ironicamente, bastante rápida. A partir daqui nunca mais houve rapidez na obra. Gaudí preferia o trabalho manual ao trabalho feito pelas máquinas porque, dizia ele “não tenho pressa, o meu Cliente pode esperar”.
Era este o aspecto da obra, em 1908.

Já em 1909, paralelamente à obra, Gaudí construiu as Escolas Provisórias da Sagrada Família, destinadas aos filhos dos trabalhadores do templo e também às crianças que faziam parte da paróquia. Mesmo no edifício das escolas, podemos ver a aversão que Gaudí tinha por cantos e arestas, substituindo-os por curvaturas harmoniosas.

Gaudí acumulava a direcção da construção do templo com outras obras civis e só a partir de 1914 se dedicou exclusivamente à construção do templo, entregando-se de corpo e alma. A dedicação foi tanta que chegou mesmo a viver no local, como um recluso, durante 12 anos. A Sagrada Família torna-se “un pays à lui” e reporta-nos à referência de Victor Hugo a Quasimodo e à sua Notre Dame. A rugosa catedral era a sua carapaça…
Quando Gaudí morreu, em 1926, apenas uma das torres da Fachada da Natividade estava completa.


É na cripta da igreja que Antoni Gaudí está sepultado.
Nos primeiros tempos, choveram entusiásticas doações mas as obras paralisaram quase completamente durante a I Grande Guerra e, mais tarde, durante a Guerra Civil. Em 1936, os republicanos atacaram a Sagrada Família, incendiando a cripta, a escola e os arquivos. Nesse atentado perderam-se os planos e os cálculos originais, apenas sobrevivendo, felizmente, as maquetas de gesso, que possibilitaram a continuação das obras de acordo com a ideia original. Depois da Guerra Civil, o templo viria a ser invadido pelos franquistas que, entre outros prejuízos, profanaram o túmulo de Gaudí, encarado por eles como um símbolo do nacionalismo catalão.
Até aos nossos dias, os trabalhos têm prosseguido a um ritmo muito irregular e moroso.

A Fachada da Natividade foi eleita por Gaudí para dar uma ideia global da estrutura e decoração do templo. Sabia que não iria terminar o projecto no decurso da sua vida e preferiu construir uma fachada completa para mostrar como viria a ser o resto. Escolheu esta fachada por ser, na sua opinião, a que poderia ser mais atraente para o público, estimulando assim a continuação da obra após a sua morte. Nas suas próprias palavras “Se em vez de fazer esta fachada decorada, ornamentada, turgente, começasse pela da Paixão, dura, nua, feita de ossos, as pessoas ter-se-iam retraído.”

Como já tive ocasião de referir, em outro “post” dedicado a Barcelona, estive nesta cidade no início da década de 70. Ao visitar a Sagrada Família, o meu pai, completamente hipnotizado pela grandiosidade do templo inacabado, não se cansava de dizer “isto é uma obra fabulosa”. Eu, nos meus crédulos 14 anos, fascinada também pelo colosso, pensei que seria um local a revisitar dali a meia dúzia de anos, quando a obra estivesse concluída…
Voltei ao fim de quase quarenta anos, continua a ser um enorme canteiro de obras…

Passaram-se 127 anos desde o início da construção deste templo gigantesco. Conseguimos, facilmente, constatar a diferença de tonalidade na pedra.
Espera-se que o monumento fique pronto nas próximas duas décadas e prevê-se que no final da construção terá início a restauração da parte mais antiga!...

A percepção que tenho, actualmente, desta obra-prima do modernismo, não é a mesma da minha adolescência e o entusiasmo de há quarenta anos desvaneceu-se um pouco.
Apesar de indiscutivelmente imponente e de todos os magnetizantes pormenores arquitectónicos, a Sagrada Família não deixa de ser bizarra e perturbadora…e, muito sinceramente, incomodou-me e intimidou-me toda aquela verticalidade tenebrosa…
A Fachada da Natividade parece feita de areia mole, da beira do mar, como se uma mão gigantesca a tivesse feito escorrer. A Fachada da Paixão, construída após a morte de Gaudí, não deixa de ser, também, estranha e inquietante, com todas aquelas figuras de traços duros e semblantes carregados e sinistros. Pelo que pude averiguar, a Fachada da Glória, em construção, será descomunal e majestosa.
Como é difícil descrever, por palavras, a tetricidade e a austeridade que menciono, por oposição à originalidade e à grandiosidade, ficam aqui as imagens que, como é usual dizer-se, valem mais do que mil palavras.
A verdade é que ninguém fica indiferente perante as obras de Gaudí e perto do Temple Expiatori de la Sagrada Família sentimo-nos reduzidos à nossa insignificância e pequenez humana…

Tal como Gaudí, é muito provável que também eu não veja o projecto acabado, no decurso da minha vida…mas trilhei la ruta del modernisme…

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