sábado, 13 de fevereiro de 2010

Livros e Mar: eis o meu elemento! (20)

Uma história que chocou a sociedade da época.


No fim da tarde de quarta-feira dia 13 de Novembro de 1918 Maria Adelaide Coelho da Cunha, filha e herdeira de Eduardo Coelho, fundador do Diário de Notícias, e mulher do administrador do mesmo jornal, Alfredo da Cunha, saiu de sua casa, o Palácio de São Vicente, à Graça, para nunca mais voltar, pretendendo começar uma nova vida junto de Manuel Claro, um homem com quase metade da sua idade e que até há um ano atrás fora motorista da família.
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Resumidamente, e na descrição sarcástica do marido, Maria Adelaide, de quarenta e oito anos, fugira para trocar um palácio em Lisboa por um primeiro andar alugado, modestíssimo, em Santa Comba Dão; um homem de cultura e de sociedade, seu marido e pai do seu único filho, por um “serviçal”, seu antigo “chauffeur” que se dizia negociante de várias coisas; uma requintada posição no topo da pirâmide social da época, por uma aldeia onde só convive com gente ordinária; sedas, tafetás, cetins, brocados, rendas e veludos, peles e jóias, por roupas muito pobres.
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Só podia haver uma explicação para tão extraordinária mudança de vida e uma frase sintetiza o diagnóstico: Maria Adelaide enlouquecera.
…Júlio de Matos, Egas Moniz e Sobral Cid, os mais famosos alienistas portugueses, utilizam, entre outros, o argumento do climatério para declarar Maria Adelaide “degenerada hereditária, na qual se vem manifestando em relação com menopausa, graves perturbações dos afectos e dos instintos que a privam de capacidade civil para reger a sua pessoa e administrar os seus bens”.
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Para o filho, a possibilidade da mãe estar louca, por mais terrível que lhe deva ter sido admiti-lo, poderá ter apaziguado a sua dor. Afinal, aquela mulher perfeita não o trocara a ele e à família, abdicando igualmente do seu requintado círculo social, para ir viver um sórdido romance de cordel. Estava doente!
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Que horrível momento aquele! Estava à porta do Conde de Ferreira!
Dar a perceber a minha indignação era pior. Estava consciente do lugar onde a tinham trazido, esses hospitais de doidos onde há coletes-de-forças que com facilidade os vestem a qualquer pessoa. A sua revolta seria tomada apenas como um sintoma de loucura.
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Tempos antes, fugira, do mesmo manicómio, outro doente, um advogado ali internado vítima de uma cabala familiar. Esse advogado viria a denunciar, energicamente, nos jornais, “a monarquia absoluta de Júlio de Matos”, autor do decreto de 11 de Maio de 1911 que regia as condições em que alguém podia ser internado num manicómio. Na verdade, qualquer pessoa poderia requerer o internamento de outra no manicómio, desde que apresentasse o atestado de dois médicos e um exame do próprio Júlio de Matos.
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Nos hospitais de doidos, tudo são sintomas de loucura: se a gente ri; se a gente chora; se estamos tristes ou alegres; se se fala ou se se está calado; quando se anda ou se está parado; se temos fome ou temos fastio; se dormimos ou se não há sono, se não nos insurgimos contra o que nos fazem ou se protestamos contra os enxovalhos e as humilhações; (…) a todo o instante, quem ali entra, por força há-de ser doido; e, se o não é, tratam de o endoidecer à força.
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Alguém que declarassem louco, era confinado a um manicómio em condições muito semelhantes, passe o aparente exagero, às de um herético colhido nas malhas da Inquisição de tão sinistra memória. Isolado, desprovido de voz e de quaisquer direitos cívicos, era-lhe absolutamente vedado o contacto com o exterior, ao nível da própria correspondência, até os médicos da enfermaria onde estava confinado ou Júlio de Matos, instância suprema, decidirem em contrário. Tudo isto regulamentado e aceite de acordo com o famoso decreto de 11 de Maio de 1911.
E era nesta teia que Maria Adelaide caíra.
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Se em vez de me haver deixado apaixonar por um filho do povo, me tivesse agradado dum duque ou dum marquês, nem eu era uma doente, nem a família me julgava desonrada.
Não, (…) decididamente, ou estamos todos doidos ou quem o está não sou eu!
(…) a tese da “pesada tara hereditária” que, na tapeçaria das gerações, manchava o sangue da senhora de São Vicente com uma “degenerescência” a que o feitio das suas orelhas – com “aderência dos lóbulos e um esboço do tubérculo de Darwin” – conferiria um argumento de não pouco peso, no diagnóstico de Júlio de Matos, Egas Moniz e Sobral Cid.
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Não havia dúvida possível. Consideravam-me demente e privavam-me de capacidade civil para reger a sua pessoa e administrar os seus bens.
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Daquela hora em diante eu não devia mais considerar-me gente: não tinha fortuna; não tinha liberdade; não tinha nada; mas, não tenho nada aparentemente, eu tinha muito mais do que todos eles – tinha coração.
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Portugal, anos 20 do século XX. Dois opositores, marido e mulher, ambos letrados, ambos muitíssimo famosos, manifestamente inteligentes e reconhecidamente sensíveis, vão a esgrimir um com o outro, nos respectivos jornais ao seu serviço, com a mais letal de todas as armas. A palavra.
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Afirmando que hei-de sair vitoriosa, afirmo-o convicta; porque sendo certo que não estou, nem nunca estive doida, há-de provar-se. Leva cinco, dez, quinze anos? Leva-me o resto da vida? Leve o tempo que levar; há-de provar-se.
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A herdeira do Diário de Notícias acabará por revelar toda a força do seu carácter insubmisso nas páginas de um vespertino, A Capital.
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Alfredo da Cunha, que de facto vendera o Diário de Notícias, tinha neste órgão de comunicação social, que o pai de sua mulher fundara com Tomás Quintino Antunes, grandes amigos, a começar pelo director, e enorme influência.
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Num país em que as leis autorizavam o divórcio, por que razão ele tinha sido sempre negado a Maria Adelaide Coelho da Cunha, preferindo-se em vez disso a solução do hospício? Recusara-lho o marido. E os parentes mais próximos, porque respeitam as convenções sociais.
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Manuel Claro saiu da prisão a 28 de Janeiro de 1922, com uma fiança de oito contos, e a um mês de completar quatro anos de cadeia. Tinha à sua espera Maria Adelaide. Os dois foram, naturalmente, viver juntos.
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Em Novembro de 1942 morre o Dr. Alfredo da Cunha e o seu filho pede a um amigo para descobrir a sua mãe. Desejava, profundamente, voltar a vê-la. Maria Adelaide acedeu, de imediato, a este encontro. As saudades não eram inferiores às manifestadas pelo filho. Estava com 70 anos e pede-lhe que levante a interdição a que estava sujeita, nada pretendendo da sua fortuna nem do Palácio de São Vicente. O pedido deve ter sido prontamente concedido – o maior opositor à sua concretização fora Alfredo da Cunha.
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A relação entre os dois, há tantos anos interrompida, reatou-se a partir daí, com o filho a ir ao Porto mais amiúde para estar com a mãe
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Maria Adelaide morreu em 1954 e está no cemitério de Ramalde. Manuel Claro partiu deste mundo em 1967. Também está sepultado em Ramalde.


Em 1 de Novembro de 2008, o sobrinho-neto de Manuel Claro foi visitar o tio ao cemitério de Ramalde. Ali, uma senhora veio ter com ele para o informar de que os restos mortais de Maria Adelaide tinham sido transladados, há alguns anos, para a campa de Manuel Claro.
Desta forma, e fossem quais fossem as razões que presidiram a tal decisão, o resultado “é que os meus tios acabaram por ficar juntos, mesmo depois da morte.”


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