O Estado não tem o direito de pagar a uns e não a outros (In Verbis – Revista Digital de Justiça e Sociedade)
Antes de embarcar num avião para os Açores, onde esteve no congresso dos juízes portugueses, o magistrado António Martins teve tempo de explicar ao Expresso porque é que o corte dos subsídios de férias e Natal é ilegal — não devendo ser cumprido mesmo que aprovado pelo Parlamento — e como é inadmissível que o Estado trate os seus credores de forma diferente. Porque os funcionários públicos são tão credores como os donos da dívida pública.
- Porque é que o corte dos subsídios de férias e de Natal é ilegal?
- O património das pessoas só pode ser objecto de incorporação no património do Estado por vias legais. E elas são o imposto, a nacionalização ou a expropriação. Não é possível ao Estado dizer: vou deixar de pagar a este meu servidor ou funcionário. O que o Estado está a fazer desta forma é a confiscar o crédito daquela pessoa. Por força de uma relação de emprego público, aquela pessoa tem um crédito em relação ao Estado, que é resultado do seu trabalho. Há aqui uma apropriação desse dinheiro, que configura um confisco: isso é ilegal e inconstitucional.
- Mas não há excepções que tornem o corte legítimo?
- Há o estado de emergência e o estado de sítio, em que os direitos das pessoas podem ser comprimidos ou suspensos durante algum tempo. Mas não foi decretado o estado de sítio ou o estado de emergência. E não o tendo sido decretado, o Estado continua sujeito ao respeito dos direitos dos cidadãos. Pode-se dizer, e nós já o afirmámos, que vivemos um momento difícil, em que é necessário salvar o país. E todos devemos ser mobilizados para essa salvação. Mas de forma adequada, precisamente pela via do imposto.
- Quer dizer que a redução para metade do subsídio de Natal deste ano já não é ilegal?
- Não é um corte. É um imposto. O imposto é lançado sobre todos, ou seja, tem carácter universal, abrangendo todos aqueles que têm capacidade contributiva, que advém dos rendimentos do trabalho mas também dos rendimentos do capital. E tem ainda carácter progressivo, em que quem mais ganha mais paga. Essa é a via justa e equitativa que respeita o direito. É a via adequada para salvar o país. Há um erro profundo na forma como se está a enquadrar esta questão. Porque há uma pergunta que subsiste: onde pára o limite disto? Qualquer dia o Governo lembra-se de decidir que as famílias com dois carros vão ter de entregar um. A situação é a mesma. Ficar com um carro de um cidadão ou ficar com o seu dinheiro é igual.
- E o que vai fazer para combater essa decisão?
- Da parte dos juízes, achamos que temos uma responsabilidade de cidadania e um imperativo de transmitir aos cidadãos portugueses que esta medida, ainda que venha a ser aprovada pelo Parlamento e ainda que venha a ser lei, não é uma lei conforme ao direito e à justiça.
- Será, portanto, uma lei ilegal?
- É uma lei ilegal e que não deve ser cumprida. Os cidadãos podem recorrer aos tribunais para salvaguardarem os seus direitos. E no espaço dos tribunais, por enquanto, num Estado de direito, que se deve equacionar a legalidade das leis e o seu cumprimento ou não. Cabe aos tribunais dizer se elas são conformes ao direito, à justiça e à constituição. Essa é a nossa grande preocupação neste momento.
- Está a apelar para que se recorra em massa aos tribunais?
- Não se trata de um apelo. Caberá a cada cidadão fazer a sua opção. Não estamos a apelar a uma intervenção maciça das pessoas juntos dos tribunais. Temos é um dever de fazer ouvir a voz dos juizes para que os cidadãos não se sintam completamente desprotegidos e abandonados perante este poder fáctico do Estado e que tem apoio em comentadores e opinion makers que aparentemente caucionam toda esta atuação.
- Mas, se a decisão é aprovada pela maioria do Parlamento, ir contra ela não é, de certa forma, um ato de desobediência civil?
- Não se trata de desobediência civil. É um exercício de um direito. Mas queremos, antes que venha a ser lei, que os parlamentares não sejam apenas deputados eleitos na lista de um partido. Queremos que debatam, como representantes das pessoas que os elegeram, se esta é a forma de um Estado ser um Estado de bem. Porque é que o Estado opta por dizer que não paga a estas pessoas e, em vez disso, não opta por dizer que não paga às entidades com as quais fez negócios ruinosos nos últimos anos, celebrando parcerias público-privadas com contratos leoninos?
- Há cláusulas nesses contratos que obrigam, certamente, a pagamentos de multas pesadas…
- E para os trabalhadores públicos não há cláusulas? É obrigação do Estado pagar-lhes os vencimentos, incluindo o 13.º e o 14.º meses. Está na lei.
- Acharia mais legítimo não pagar parte das parcerias público-privadas?
- Um Estado de bem tem a obrigação de pagar a todos os seus credores. Se não tiver possibilidade de pagar a todos, também não tem o direito de dizer que paga a uns e não paga a outros. Esta é a questão. O Estado não tem direito de dizer que paga aos seus credores internacionais, aos seus credores das parcerias público-privadas, aos credores que defraudaram os depositantes no BPN e no BPP, mas não paga às pessoas que trabalham no sector público.
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
Message in a bottle (60)
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