quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Tornar (volver) a Barcelona (4)

Barcelona
12 de Setembro – 1ª parte


A manhã do segundo dia começou lindamente, com um pequeno-almoço magistral…
A oferta era tanta que não sabia o que escolher, acabando por optar comer de quase tudo um pouco, pensando na sorte que tinha em não ter esta variedade todos os dias da minha vida. Se eu comesse assim diariamente, para além de passar de forte a gorda, num ápice, o meu orçamento familiar mensal não chegava para quinze dias…
Pãezinhos, croissants, manteiga, queijos, fiambre, presunto, doces, frutas variadas descascadas e cortadas, donuts, fatias de bolo, leite, sumo de laranja, iogurtes e para rematar un café solo

A minha atracção por Barcelona já se tinha revelado na véspera, no primeiro contacto com a cidade. Este segundo “rendez-vous” serviria para fortalecer a minha afinidade, já visível no primeiro encontro, e para me render irreversivelmente aos seus marcantes, notáveis e arrebatadores encantos... (é pá…esta frase saiu-me mesmo bem!).
Munida do mapa e do guia, e depois de um périplo pela recepção do hotel, para um desvio de rebuçados, saímos a porta rotativa para o nosso encontro marcado com a cidade…
O programa para este dia de sábado estava mais ou menos esquematizado na minha cabeça e os nossos alvos eram os distritos de L’Eixample (expansão, alargamento) e Gracià, o primeiro com muitos edifícios resultantes da difusão do Modernismo no início do século XX.
Como Barcelona é praticamente plana, é possível encontrar, em vários locais, bicicletas para alugar, podendo juntar o útil ao agradável, pedalando enquanto se desfruta plenamente de tudo o que a cidade tem para nos oferecer. Evidentemente que não optámos por pedalar, optámos pela linha 3 do metro que nos levou de Sants Estació até à estação de Lesseps, que tem uma saída para a praça com o mesmo nome.

A nossa primeira paragem, nesta esplêndida manhã era o Parque Güell (em catalão Parc Güell, embora o seu nome original fosse Park Güell).

Quando estive em Barcelona, há um ror de anos atrás, não tinha maturidade nem conhecimentos para apreciar os trabalhos de Antoni Gaudí nem tão-pouco deixar-me envolver pelas formas perfeitas que criou…
Se há mais de três décadas me falassem de Gaudí, a única menção que poderia fazer, tendo em conta a minha magra cultura geral, seria “foi um famoso arquitecto do país vizinho”.
Foram necessários alguns anos para, numa das minhas excursões pelas enciclopédias “caseiras”, tomar contacto com o arquitecto catalão e a genialidade das suas construções.
Dizem que de médico e de louco todos nós temos um pouco. Não sei se Gaudí teve a sua quota-parte de médico, mas teve muito de louco, e se pensarmos bem, a loucura e a genialidade andam, quase sempre, de mãos dadas. Abençoada loucura, a deste arquitecto modernista que criou obras sublimes de uma beleza ímpar, intemporal, imutável e imortal…
Ao portão do parque, a famosa salamandra (há quem lhe chame lagarto e há quem lhe chame dragão) de Gaudí, em “carne e osso”, esperava-nos para umas daquelas fotos pacóvias em que fazemos umas figurinhas muito tristes, mas mesmo sabendo isso continuamos a fazer figurinhas tristes… nós fizemos…todos, sem excepção…Aqui, deixo apenas a foto da salamandra porque é a única que ainda tem lata para dar a cara…

O Parc Güell, com cerca de 17 hectares, situa-se numa encosta da Montanha Pelada (Montanha de El Carmel), e foi encomendado a Gaudí, nos finais do século XIX, pelo conde Eusebi Güell, seu amigo íntimo e mecenas.
Gaudí e Güell imaginaram um projecto semelhante às cidades-jardim inglesas (daí o nome original Park Güell), com 60 chalés e uma vista panorâmica sobre toda a cidade de Barcelona. Güell entregou este projecto a Gaudí, confiando plenamente nas suas ideias e decisões artísticas (aqui ficam os meus agradecimentos a Güell).
O muro que envolve todo o recinto foi construído com pedra rústica e podem ver-se uns “medalhões” com as inscrições “Park” e “Güell”.



Nesse grande terreno da Montanha Pelada nada apontava para que ali pudesse nascer um parque pois o solo era demasiado árido e pedregoso e a vegetação era escassa. Segundo Rainer Zerbst, Gaudí responde à provocação da natureza com uma obra-prima, “uma espécie de escultura gigantesca, como se o escultor tomasse toda a montanha como material da sua criação plástica”.
O projecto ambicioso, mas destinado ao insucesso, acabou por falhar. Não apareceram compradores para os terrenos visto que a urbanização se encontrava longe do centro da cidade. No entanto, as obras continuaram e com a morte de Güell em 1918, os herdeiros venderam os terrenos ao município da cidade, tendo sido inaugurado como parque público em 1922.
Foi assim que Barcelona acabou por ganhar um magnífico jardim e o encanto do lugar prevalecerá para lá dos tempos…
Gaudí situou a entrada principal na parte mais baixa da montanha, na Rua Olot, e o acesso ao parque faz-se por um portão lindíssimo de ferro forjado, representando folhas de palmito.

A sensação que tive, assim que transpusemos o portão, foi a de que estava a entrar num universo mágico, num daqueles mundos de faz de conta, como os que antigamente povoavam o meu imaginário…
Nos dois lados do portão da entrada situam-se dois pavilhões. Construídos também de pedra rústica e com várias aplicações de cerâmica, uma das técnicas preferidas de Gaudí, conhecida por trencadís, fizeram-me imediatamente lembrar a casinha de chocolate do conto infantil Hänsel e Gretel.

Curiosamente, parece que esses pavilhões evocam mesmo a casa do conto, pois em 1901, ano da sua construção, era representada, no Liceu, a ópera do compositor alemão Engelbert Humperdinck, com o mesmo nome.
O pavilhão mais pequeno, destinado à administração da excêntrica urbanização, tem terraço e uma torre com uma cruz de quatro braços, típica de Gaudí. O pavilhão maior, destinado à portaria, termina com uma cúpula em forma de cogumelo.

Ainda na entrada, junto aos pavilhões, existe um espaço amplo com duas zonas que parecem grutas, sendo a da direita para abrigo de carruagens. Tem uma sala circular sustentada por uma coluna central de forma cónica e todas as colunas fazem lembrar patas de elefante.


Deste hall de entrada parte uma grandiosa escadaria, disposta simetricamente, que fica entre muros com umas estruturas salientes que parecem ameias. Na zona central da escadaria existem três fontes, cada uma delas com a sua simbologia, mas a mais conhecida é, sem dúvida, a da salamandra, que se converteu no emblema do parque.





Antes de subirmos até à Sala Hipóstila, existe um patamar onde se situa um banco em forma de odeão, com a particularidade de ter Sol durante o Inverno e sombra durante o Verão… Só poderia ter saído da livre criatividade de Gaudí, um mestre na arte de produzir grandes efeitos, tudo pensado ao pormenor.
No cimo da escadaria situa-se a Sala Hipóstila ou Sala das Cem Colunas. As colunas exteriores estão ligeiramente inclinadas para conseguir um melhor equilíbrio estrutural. Esta sala tem, na verdade, 86 colunas e foi desenhada para funcionar como mercado do bairro residencial. Actualmente é utilizada por alguns músicos por causa da acústica que oferece. As colunas têm 6 metros de altura e 1,20 metros de diâmetro. O tecto é revestido de trencadís branco e em alguns espaços existem umas rosetas, revestidas também com trencadís, que representam as quatro estações do ano.
Verdadeiramente fascinante…




O último lance da escadaria leva-nos à Gran Plaça Circular, um espaço aberto com 3000 metros quadrados, que é o ponto central do Parc Güell e foi executada por Josep Jujol, um dos principais colaboradores de Gaudí e o que tinha mais imaginação criativa.
Segundo o plano original, a praça devia ser um teatro grego, adequado para reuniões comunitárias e para celebração de eventos culturais e religiosos.
Na parte exterior contém um friso coberto de gárgulas para desaguar a chuva, bem como formas de gotas de água.


Fiquei um pouco surpreendida por esta praça não ter pavimento. Só mais tarde vim a saber o motivo e pareceu-me de um discernimento vanguardista. A água que a praça recolhe, proveniente da chuva, é drenada e canalizada pelas colunas (da Sala Hipóstila) que a suportam, e é acumulada num depósito subterrâneo de 1200 m3, sendo posteriormente utilizada para regar o parque. Se o depósito ultrapassar um determinado limite, a água excedente é expelida pela salamandra… Isto é de uma clarividência espantosa.
A Gran Plaça Circular é simplesmente colossal e daqui temos uma vista espantosa e privilegiada sobre a cidade.


Esta praça apresenta um banco com uma forma ondulante com cerca de 152 metros a toda a sua volta, repleto, igualmente, com a famosa técnica preferida do arquitecto catalão, os fantásticos mosaicos coloridos, o trencadís. Sentámo-nos na “serpente” ondulante a admirar a agitação da praça e o belíssimo panorama que dali se avista. Estive sentada no que dizem ser o banco mais comprido do mundo. Não sei até que ponto esta afirmação é verdadeira, nem me vou dar ao trabalho de confirmá-la porque o que realmente importa é que este banco, incontestavelmente, é lindíssimo, é harmonioso, é monumental, é impressionante, é delirante, é Gaudí… e como o próprio dizia "a linha recta é do homem, a curva pertence a Deus"

Continuámos o nosso passeio pelo parque. Gaudí construiu uma série de viadutos largos que seriam utilizados pelas carruagens e por baixo deles uns caminhos para serem percorridos a pé. Destes caminhos destaca-se o Caminho do Rosário, onde se encontra a Casa Museu Gaudí. Esta casa, desenhada por Francesc Berenguer, foi construída como casa modelo da urbanização, sendo depois adquirida por Gaudí quando o projecto fracassou, passando a ser a sua residência durante alguns anos. A casa é graciosa mas não é necessário ser perito em arquitectura para, à primeira vista, sabermos que não pertence à criatividade encantadora de Gaudí. Linhas rectas e planas não são, de facto, o seu estilo pessoal…


"Gaudí trabalhou neste parque entre 1900 e 1914 e pode dizer-se que foi com ele que entrou naquilo que os especialistas declaram ser o seu período de maturidade, numa altura em que deixaram de o chamar modernista, para lhe colocar o epíteto de surrealista."
Não tenho conhecimentos para assegurar se é modernista, surrealista ou se é um misto dos dois movimentos artísticos, mas penso ter sensibilidade para apreciar a harmonia de formas e cores visíveis nas obras de Gaudí…
Saímos do Park Güell. Foi com algum pesar que me afastei do sublime parque, que um dia foi o sonho marcante e extraordinário de dois homens…

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