sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Memórias e Afectos (90)

Com a aproximação do Natal, as minhas mais doces memórias natalícias intrometem-se e fundem-se com as minhas memórias amargas de há dois anos, quando perdi o meu pai numa partida incansável nesse tabuleiro de xadrez que é a vida, onde não passamos de peças tomando decisões e fintando obstáculos até sucumbirmos ao xeque-mate… Ninguém ganha esta partida, de nada nos servem as jogadas ofensivas ou os lances defensivos, o “adversário” é um Mestre implacável que mantém o predomínio do jogo até ao final.
Os dias que antecedem o Natal são apáticos. Queria esquecer que existo para não pensar, queria adormecer e acordar só em Janeiro, queria apagar os dias 23 e 24 de Dezembro, queria fugir às festividades, queria voltar ao Natal de 2008, quando ainda tinha pai…
Com a aproximação do Natal, as minhas mais doces memórias natalícias insistem em sobrepor-se à dor, e toda uma parafernália de imagens, que povoavam o meu quotidiano natalício ao longo da minha infância, resgatadas do seu sono profundo, despontam como clarões de relâmpagos.
A Festa de Natal dedicada aos filhos e familiares dos empregados da Companhia de Seguros L’Urbaine, onde o meu pai era chefe da secção de contabilidade, era um acontecimento. Não faltavam os palhaços e o ilusionista, mas a peça de teatro infantil, encenada pelos empregados do clube de teatro do grupo desportivo, era, para mim, a parte alta do espectáculo porque achava imensa graça ver os colegas do meu pai convertidos em actores. A entrega dos presentes, excelentes e adequados às idades, era personalizada. As crianças eram chamadas pelo microfone e as prendas entregues pela esposa do Presidente ou pelo próprio Pai Natal... Ouvir chamar o meu nome dava um certo sainete e isso fazia sentir-me importante. O lanche, bem servido, rematava a festa. Os adultos conviviam enquanto a miudagem brincava e corria atrás dos balões.

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eria muito bom que todas as crianças pudessem viver o fascínio dos dias que antecedem o Natal e a magia da noite da Consoada como eu vivi. Dias antes do Natal, a ida à Baixa lisboeta era peregrinação obrigatória. Os presentes para a família raramente eram comprados na Baixa, mas a roupa para estrear no dia de Natal (tradição que se manteve durante uns anos) era comprada na secção infantil da Lanalgo, a loja das três entradas para uma saída feliz. Num desses inevitáveis dias de roupinha nova, apesar dos conselhos para não me afastar perdi-me dos meus pais, mas uma empregada levou-me pela mão e chamou-os pelo altifalante. O reencontro foi comovedor, digno de um filme lamechas com um final feliz…


Eram também local de romaria imprescindível, a Casa Africana, os Grandes Armazéns do Chiado e os do Grandella, estes últimos com umas pomposas e memoráveis escadas rolantes que tinham sido inauguradas por Gertrudes Tomás, com direito a corta-fitas, no final da década de 50. Andar nas escadas rolantes era um intenso prazer, um verdadeiro gozo para a alma. Estes famosos armazéns lisboetas serviram de palco ao filme “O Pai Tirano” e quem não recorda o caixeiro Chico e o grupo de teatro amador “Os Grandelinhas”?
Nesse périplo pelas novidades, que apareciam em maior número na quadra natalícia, eu ficava colada aos vidros das montras, atraída pelos bonecos mecânicos que se moviam, convidando-me a entrar no seu mundo fascinante. Naquela idade da inocência, em que ainda acreditava no Pai Natal, ser fotografada com esse ajudante incansável do Menino Jesus era uma felicidade sem limites, uma comoção, pura magia… Julgo que esta foto foi tirada junto à Quermesse de Paris, uma loja de brinquedos que existia ao lado do Hotel Avenida Palace, mas pode ter sido em frente ao Paraíso Infantil na Rua da Prata.

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Regressando à infância, recordo outras lojas de brinquedos que me deliciavam nos longínquos anos 60, o Bazar Thadeu na Rua Augusta, a Biaggio Flora na Rua do Ouro e Pinóquio nos Restauradores, e que ficaram na memória de muitos alfacinhas, assim como as iluminações de Natal que, nesse tempo, eram atração para todas as idades…
Depois do jantar da Consoada e de ter posto o sapatinho na chaminé, mandavam-me para a cama pois o Menino Jesus e o Pai Natal só viriam quando todos os meninos estivessem a dormir. Era difícil adormecer, a ansiedade pela chegada de tão ilustres visitantes não me deixava sossegar. Com a porta do quarto fechada, levantava-me, e por entre as frestas dos estores olhava o céu tentando ouvir as campainhas do trenó puxado pelas renas. Voltava para a cama, com o som dos guizos à distância, e acabava por adormecer sonhando com as prendas pedidas ao Menino Jesus. Na manhã do dia 25 corria à chaminé e à volta do meu sapatinho, estavam os embrulhos coloridos que eu me apressava a levar para a cama dos meus pais. Aí, desembrulhava-os um a um, provando-lhes que os meus pedidos tinham sido satisfeitos. Aos meus pais cabia a tarefa de se mostrarem surpreendidos de cada vez que eu lhes mostrava um brinquedo novo…

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Andaria eu pelos sete anos quando, na escola, apanhei o meu primeiro balde de água fria. Quase a entrarmos nas férias de Natal a decepção chegou através de uma colega que me informou sem pejo e com a maior das naturalidades que quem nos dava as prendas eram os pais. A suspeição assaltou-me. Então o Pai Natal não existia? Não era o Menino Jesus que, através do seu fiel ajudante, me dava as prendas de que eu me achava merecedora? Podia lá ser… Não contei nada em casa. Queria esclarecer a dúvida sem melindrar ninguém. Nesse ano, na noite de 24, quando me mandaram para a cama, não preguei olho. Ouvia conversar na casa de jantar/sala. Tinha frio, mas mantinha-me sentada na cama para não ceder ao joão-pestana. Já a noite ia longa quando as vozes deram lugar ao silêncio. Os passos soaram pela casa e julguei, na minha inocência, que eram horas dos outros se deitarem, mas um pequeno restolhar vindo da cozinha fez-me aproximar da porta do quarto e espreitar pela fechadura. A fantasia do Natal caiu por terra, os sonhos desfizeram-se como que levados pelo vento e o encanto do Natal parou ali, naquele momento, quando vi passar a minha mãe e o meu irmão, com dois embrulhos, a caminho da cozinha…
Na manhã seguinte, corri à chaminé e por entre os vários embrulhos de papel colorido, lá estavam os dois que eu tinha visto nas mãos dos meus queridos familiares. Mantive a farsa, fiz de conta que estava maravilhada pelo facto das minhas preces terem sido atendidas e deliciei-me com os presentes. Será que a magia natalícia tinha desaparecido? Não me recordo se cheguei a contar-lhes ou se continuei a simular a minha crença, mas se o fiz não foi para os enganar, foi, certamente, para manter viva a magia do Natal e poder sonhar enquanto era criança…

4 comentários:

José Leite disse...

Pelas fotos e datas a Fátima deve ter mais ano menos ano a minha idade, pelo que tudo o que escreveu me trouxe às mesmas lembranças e locais de Lisboa.

Quanto ao Pai Natal tambem soube da verdade na escola, mas deixei «andar» para ,não desiludir os meus pais que tanto gostavam da minha surpresa.

Hoje já não existe essa magia. As crianças deitam-se tarde sabem tudo pela internet ou televisão.

Assim como desapareceram essas grandes lojas e armazens que referiu, perdeu-se tambem a magia do Natal.

Parabéns pelo seu texto e já agora um Bom Ano de 2012.

Cumprimentos

José Leite

Pezinhos na Areia disse...

Obrigada José, afinal ainda conseguimos, nem que seja por breves momentos, recordar e viver a magia do Natal...o que já não acontece, como referiu, hoje em dia.
No nosso tempo, ainda podíamos associar a realidade à fantasia e isso era tão saudável...

Quanto à idade, eu devo ser mais "entradota", sou de 1957...

Que o próximo 2012 lhe traga tudo de bom e a magia que se foi perdendo.

Um abraço natalício,
Fátima Castro

José Leite disse...

Bem me queria parecer que eu estava perto da realidade.

Só para não restarem dúvidas, sou de 1958, pelo que tinha razão ao escrever «mais ano menos ano».

Falou, ou melhor escreveu, a experiência que nos deu a idade ainda não muito avançada .... rsrsrs.

Grato pela sua mensagem.

Cumprimentos

José Leite

Pezinhos na Areia disse...

Realmente, foi mesmo sensibilidade de perito...
Não nos podemos rir um do outro, quando a idade avançada chegar.

Obrigada pelos seus comentários.

Cumprimentos,
FC