O título pode parecer um pouco estranho. Foi retirado de um poema do autor, onde diz que queremos ser portugueses nem que seja por casmurrice.
Foi o primeiro romance que li de valter hugo mãe. É uma homenagem ao seu pai falecido há dez anos. Tinha 59 anos e nunca chegou a viver a terceira idade.
Através da personagem central, um senhor viúvo de 84 anos que foi metido no lar Feliz Idade, hugo mãe fala da velhice, da solidão, da decadência e da morte, de uma forma exemplar. De como os idosos definham, vivem contra o corpo em falência e acabam por desistir de viver. Mas, fala também da amizade e das várias formas de amar.
Apesar de ter tido, inicialmente, alguma dificuldade em lidar com a falta de maiúsculas do início das frases (o autor diz que sempre gostou da limpeza das minúsculas), a leitura revelou-se dramática e emocionante. Amei este livro, sublinhei-o, saboreei-o e sensibilizei-me com as frases mais comoventes. Tocou-me principalmente porque o meu pai faleceu num lar. Ler este romance foi como que uma expiação…
…pegaram em mim e puseram-me no lar com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias.
a elisa ainda estaria no lar a reconfortar-se pela decisão difícil de deixar ali o pai, e eu sabia que voltaria para se despedir, com um beijo em tudo traidor, e seguiria com a sua vida chorando na viagem de regresso a casa.
…aos meus pés os dois sacos de roupa e uma enfermeira dizendo coisas simples, convencida de que a idade mental de um idoso é, de facto, igual à de uma criança. o choque de se ser assim tratado é tremendo e, numa primeira fase, fica-se sem reacção.
…o lar da feliz idade, assim se chama o matadouro para onde fui metido.
…os quartos da ala esquerda deitam sobre o cemitério mas são ocupados pelos utentes que, infelizmente, já não se podem levantar.
…e tive a certeza de que, mais tarde, quando o corpo me traísse por completo, haveria de estar acamado e mudado para um daqueles quartos com vista para o cemitério, que era o caminho.
…estar para ali metido, naqueles primeiros tempos, era literalmente como se me quisessem matar e não tivessem coragem para optar por um método mais rápido.
…punham-me aqui e deixavam que me finasse segundo a segundo longe dos seus olhos. e eu nem entendia como não haveria de parar o coração só à força daquela tristeza.
…envelhecer é tornarmo-nos vulneráveis e nada valentes, pelo que enlouquecemos um bocado e somos só como feras muito grandes sem ossos, metidas dentro de sacos de pele imprestáveis que já não servem para nos impor verticalidade nem nas mais pequenas batalhas.
…um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento.
…e quando eu fico bloqueado não é por estar imaturo e esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e ir como que apodrecendo, igual aos frutos. nós sabemos que erramos e sabemos que, na distracção cada vez maior, na perda de reflexos e de agilidade mental, fazemos coisas sem saber e não as fazemos por estupidez. fazemos por descoordenação entre o que está certo e o que nos parece certo e até sabemos que isso de certo ou errado é muito relativo. é tudo mais forte do que nós.
…este já não se ocupa com nada, está descerebrado. eu achava que não. havia uma água nos seus olhos, uma água permanente que os punha como a lacrimejar. e ele movia-os na direcção de quem entrasse. não movia a cabeça, não bulia um só dedo, que todo o corpo estava desligado, mas mexia os olhos acompanhando-nos e fixando também o nosso próprio olhar. estava encurralado ali dentro, sem movimento nem voz, a descontar o tempo da pior maneira, lentamente.
…o nosso inimigo é o corpo. porque o corpo é que nos ataca. estamos finalmente perante o mais terrível dos animais, o nosso próprio bicho, o bicho que somos. que decide que é chegado o momento de começar a desligar-nos os sentidos e decide como e quando devemos padecer de que tipo de dor ou loucura.
…ser-se velho é viver contra o corpo. o estupor do bicho que nós somos e que já não nos suporta mais. a violência na terceira idade.
…a morte vem mesmo de todos os lados e leva-nos tudo, mesmo aquilo a que nos agarramos para lhe fugir. se o tempo não é linear, a morte não é unidireccional, acomete-nos como um círculo fechado.
…a morte era, afinal, a mais organizada das instituições. cheia de afazeres e detalhes, mas muito competente e certeira.
…os peixes têm uma memória de segundos, três segundos. é por isso que não ficam loucos dentro daqueles aquários sem espaço, porque a cada três segundos estão como num lugar que nunca viram e podem explorar. devíamos ser assim, a cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de vida, porque a mais ridícula coisa na primeira imagem seria uma explosão fulgurante da percepção de estar vivo. a cada três segundos experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais nada, apenas o assombro dessa constatação.
…iam levar-me para a ala esquerda e eu não podia mais defender-me. não me levantava, permanecia estendido com as pernas numa espécie de formigueiro e a boca aberta à súplica do ar.
…o meu cérebro estava a afundar-se, estava a aluir corpo abaixo, já depois do coração, lentamente, a desregular o sítio de cada coisa. o meu cérebro levava-se de mim, anulando progressivamente cada memória, cada desejo. estava no ponto peixe. o glorioso ponto peixe a partir do qual o destino nos começa a ser irrelevante.
Através da personagem central, um senhor viúvo de 84 anos que foi metido no lar Feliz Idade, hugo mãe fala da velhice, da solidão, da decadência e da morte, de uma forma exemplar. De como os idosos definham, vivem contra o corpo em falência e acabam por desistir de viver. Mas, fala também da amizade e das várias formas de amar.
Apesar de ter tido, inicialmente, alguma dificuldade em lidar com a falta de maiúsculas do início das frases (o autor diz que sempre gostou da limpeza das minúsculas), a leitura revelou-se dramática e emocionante. Amei este livro, sublinhei-o, saboreei-o e sensibilizei-me com as frases mais comoventes. Tocou-me principalmente porque o meu pai faleceu num lar. Ler este romance foi como que uma expiação…
…pegaram em mim e puseram-me no lar com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias.
a elisa ainda estaria no lar a reconfortar-se pela decisão difícil de deixar ali o pai, e eu sabia que voltaria para se despedir, com um beijo em tudo traidor, e seguiria com a sua vida chorando na viagem de regresso a casa.
…aos meus pés os dois sacos de roupa e uma enfermeira dizendo coisas simples, convencida de que a idade mental de um idoso é, de facto, igual à de uma criança. o choque de se ser assim tratado é tremendo e, numa primeira fase, fica-se sem reacção.
…o lar da feliz idade, assim se chama o matadouro para onde fui metido.
…os quartos da ala esquerda deitam sobre o cemitério mas são ocupados pelos utentes que, infelizmente, já não se podem levantar.
…e tive a certeza de que, mais tarde, quando o corpo me traísse por completo, haveria de estar acamado e mudado para um daqueles quartos com vista para o cemitério, que era o caminho.
…estar para ali metido, naqueles primeiros tempos, era literalmente como se me quisessem matar e não tivessem coragem para optar por um método mais rápido.
…punham-me aqui e deixavam que me finasse segundo a segundo longe dos seus olhos. e eu nem entendia como não haveria de parar o coração só à força daquela tristeza.
…envelhecer é tornarmo-nos vulneráveis e nada valentes, pelo que enlouquecemos um bocado e somos só como feras muito grandes sem ossos, metidas dentro de sacos de pele imprestáveis que já não servem para nos impor verticalidade nem nas mais pequenas batalhas.
…um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento.
…e quando eu fico bloqueado não é por estar imaturo e esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e ir como que apodrecendo, igual aos frutos. nós sabemos que erramos e sabemos que, na distracção cada vez maior, na perda de reflexos e de agilidade mental, fazemos coisas sem saber e não as fazemos por estupidez. fazemos por descoordenação entre o que está certo e o que nos parece certo e até sabemos que isso de certo ou errado é muito relativo. é tudo mais forte do que nós.
…este já não se ocupa com nada, está descerebrado. eu achava que não. havia uma água nos seus olhos, uma água permanente que os punha como a lacrimejar. e ele movia-os na direcção de quem entrasse. não movia a cabeça, não bulia um só dedo, que todo o corpo estava desligado, mas mexia os olhos acompanhando-nos e fixando também o nosso próprio olhar. estava encurralado ali dentro, sem movimento nem voz, a descontar o tempo da pior maneira, lentamente.
…o nosso inimigo é o corpo. porque o corpo é que nos ataca. estamos finalmente perante o mais terrível dos animais, o nosso próprio bicho, o bicho que somos. que decide que é chegado o momento de começar a desligar-nos os sentidos e decide como e quando devemos padecer de que tipo de dor ou loucura.
…ser-se velho é viver contra o corpo. o estupor do bicho que nós somos e que já não nos suporta mais. a violência na terceira idade.
…a morte vem mesmo de todos os lados e leva-nos tudo, mesmo aquilo a que nos agarramos para lhe fugir. se o tempo não é linear, a morte não é unidireccional, acomete-nos como um círculo fechado.
…a morte era, afinal, a mais organizada das instituições. cheia de afazeres e detalhes, mas muito competente e certeira.
…os peixes têm uma memória de segundos, três segundos. é por isso que não ficam loucos dentro daqueles aquários sem espaço, porque a cada três segundos estão como num lugar que nunca viram e podem explorar. devíamos ser assim, a cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de vida, porque a mais ridícula coisa na primeira imagem seria uma explosão fulgurante da percepção de estar vivo. a cada três segundos experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais nada, apenas o assombro dessa constatação.
…iam levar-me para a ala esquerda e eu não podia mais defender-me. não me levantava, permanecia estendido com as pernas numa espécie de formigueiro e a boca aberta à súplica do ar.
…o meu cérebro estava a afundar-se, estava a aluir corpo abaixo, já depois do coração, lentamente, a desregular o sítio de cada coisa. o meu cérebro levava-se de mim, anulando progressivamente cada memória, cada desejo. estava no ponto peixe. o glorioso ponto peixe a partir do qual o destino nos começa a ser irrelevante.
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