segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A Ceia do Natal

(texto retirado da Selecta de Língua e História Pátria, “Meu Portugal, Minha Terra”, o meu livro do 2º ano dos liceus).

     Celebrava-se a ceia, o mais solene banquete da família minhota. Tinham vindo os filhos, as noras, os genros, os netos. Acrescentava-se a mesa. Punha-se a toalha grande, os talheres de cerimónia, os copos de pé, as velhas garrafas douradas. Acendiam-se mais luzes nos castiçais de prata. As criadas, de roupinhas novas, iam e vinham activamente com as rimas de pratos, contando os talheres, partindo o pão, colocando a fruta, desrolhando as garrafas.
     Os que tinham chegado de longe nessa mesma noite davam abraços, recebiam beijos, pediam novidades, contavam histórias, acidentes da viagem: os caminhos estavam uns barrocais medonhos; e falavam da saraivada, da neve, do frio da noite, esfregando as mãos de satisfação por se acharem enxutos, agasalhados, confortados, quentes, na expectativa de uma boa ceia, sentados no velho canapé da família.
     E o nordeste assobiava pelas fisgas das janelas; ouvia-se ao longe bramir o mar ou zoar a carvalheira, enquanto da cozinha, onde ardia no lar a grande fogueira, chegava num respiro tépido o aroma do vinho quente fervido com mel, com passas de Alicante e com canela.
     Finalmente o bacalhau guisado dava a última fervura, as frituras de abóbora-menina, as rabanadas, as orelhas-de-abade tinham saído da frigideira e acabavam de ser empilhadas em pirâmide nas travessas grandes. Uma voz dizia:
     ― Para a mesa! Para a mesa!
     Havia o arrastar das cadeiras, o tinir dos copos e dos talheres, o desdobrar dos guardanapos, o fumegar da terrina. Tomava-se o caldo, bebia-se o primeiro copo de vinho, estava-se ombro com ombro, os pés dos de um lado tocavam nos pés dos que estavam defronte. Bom aconchego! Belo agasalho! As fisionomias tomavam uma expressão de contentamento, de plenitude. Que diabo! Exigir mais seria pedir muito. Tudo o que há de mais profundo no coração do homem, o Amor, a Religião, a Pátria, a Família, estava tudo aí reunido numa doce paz, não opulenta, mas risonhamente remediada e satisfeita. Não é tudo?

                                                                                            Ramalho Ortigão ― As Farpas, I

2 comentários:

jmsc disse...

nestes textos das selectas fui formando o meu gosto pela literatura. E não me lembro de me ter acontecido nada de mal, antes pelo contrário...

Pezinhos na Areia disse...

Também eu gostava dos textos das selectas, embora muitos deles fossem sobre as colónias, lembras-te?
Fizeste recordar-me alguns que, por um motivo ou outro, gostava imenso.
Julgo que vou postar um...