domingo, 10 de abril de 2011

Memórias e Afectos (76)

Corria o Verão de 1967. Concluídos os três exames da instrução primária (4ª classe, admissão às escolas técnicas e admissão ao liceu) com bom aproveitamento (ahahahahah…) e indiferente aos êxitos dos Beatles, ao lançamento de álbuns e concertos dos Doors, Bee Gees, Pink Floyd, The Who, Genesis ou Jimi Hendrix, eu ansiava pela liberdade, saboreando, com excitação, cada momento de brincadeira que já vislumbrava. Não havia nada melhor do que as férias GRANDES! Com as baterias apontadas para os meses de férias, que se estendiam a perder de vista, passei ao lado do Hot Summer e dos símbolos hippies da época, mas o hino do Summer of love, San Francisco (Be Sure to Wear Some Flowers in Your Hair) que se tornou um sucesso na voz de Scott McKenzie, ficou para sempre na minha memória e o single, que ainda guardo religiosamente, tocou vezes sem conta. If you're going to San Francisco, be sure to wear some flowers in your hair…For those who come to San Francisco, summertime will be a love-in there…

Estávamos no Verão de 1967. Entre as brincadeiras de rua e o mês de Agosto, passado, como já era habitual, em Caldas da Rainha, (com o meu avô já em falência física e muito abalado devido ao desaparecimento do cão, companheiro de longa data…) o Outono chegou tranquilo e a 7 de Outubro de 1967 entrei no 1º ano do liceu. Como não existia nenhum estabelecimento de ensino liceal na Amadora, na altura uma freguesia do concelho de Oeiras, fui frequentar uma secção do Liceu Passos Manuel em Massamá. Presentemente, acho ridículo uma freguesia de Oeiras não ter um liceu. A escola compreendia um edifício principal, actualmente o Pavilhão Administrativo da Escola E.B.2,3 de D. Pedro IV (que agora pertence à freguesia de Monte Abraão), e dois pavilhões.

O historial da escola está ligado ao nome de D. Ayres de Saldanha de Meneses e Sousa que adquiriu a propriedade da Tascôa iniciando a construção de um solar que lhe iria servir de residência. Sóbrio e com um piso apenas, o solar de D. Aires nunca chegou a ostentar brasão pois o seu proprietário faleceu durante a fase final da construção, quando já estavam de pé as grossas paredes do andar térreo. A parte do segundo piso deve ter sido mandada construir por quem adquiriu a Quinta da Tascôa.
Embora a distância entre a Amadora e a actual escola seja sensivelmente a mesma, naquele tempo demorava-se, certamente, mais a percorrê-la. Esse motivo, aliado à nossa infantilidade, levou um grupo de pais a alugar uma camioneta que nos apanhava num local previamente acordado e nos deixava, sãs e salvas (as turmas não eram mistas), no liceu. O regresso processava-se da mesma forma. Julgo que o impulsionador desta ideia foi um senhor, salvo erro de apelido Salvado, que era construtor civil e pai de uma das alunas.

Lamentavelmente, não tenho recordação de nenhum professor desse tempo, mas em contrapartida lembro-me de algumas colegas que me acompanhavam nas aventuras e mistérios que nos propúnhamos desvendar, forjados, infelizmente, pela nossa fértil imaginação. A lembrança de uma pequena gruta com uma nascente, situada nas traseiras e nos terrenos anexos à escola, traz-me à memória as muitas investigações que, influenciadas pela leitura de Enid Blyton, seguiam de vento em popa, nos levaram a “eventuais suspeitos” e a chegar atrasadas a algumas aulas…
Outra diversão, que perdura na minha memória e me tomava uma boa parte dos intervalos, era o jogo do mata! Jogávamos sempre com um ringue porque se tornava mais fácil o arremesso e por conseguinte, “matar” a adversária. Por vezes, os jogos passavam de um intervalo para o outro e memorizávamos a posição das equipas. Joguei tanto e com tanta tenacidade que me tornei uma especialista e muitas colegas me seleccionavam para a sua equipa, caso não fosse eu a fazer a selecção. Os meus intervalos eram, portanto, repartidos entre “investigações” e “mata”. Estas “tendências” ter-me-ão levado a perguntar ao meu pai o que era necessário para ingressar na Scotland Yard… Ele sorriu e perguntou-me “porquê a Yard? Temos no nosso país a Polícia Judiciária!...”. Disse-lhe que não me interessava, o que eu queria mesmo era fazer parte da melhor polícia do mundo… Como contra factos não há argumentos, o meu pai lá tentou explicar-me que incorporar uma instituição tão prestigiada teria, certamente, provas complicadas. O meu pai nunca me deixou sem resposta, mesmo quando as minhas perguntas lhe pareciam bizarras ou invulgares…
Relembro, com alguma nostalgia, o último dia de aulas que antecedia as férias do Natal e Páscoa. A directora de turma permitia-nos recitar e cantar, mas, como nunca gostei de enfrentar plateias, não me oferecia como voluntária.
No entanto, a Emília (Mila) e a Manuela nunca “faltaram à chamada” e, apesar de as canções não variarem, eu gostava de as ouvir e fiquei com duas para sempre gravadas no meu baú das memórias. Uma delas, aproveitando a música do filme português Maria Papoila, começava assim: Ai, ai, ai, Matemática e Francês, Ciências e Português, dão-me cabo do toutiço… A outra, inspirada na canção do Pirata da Perna de Pau, tinha este excerto engraçado: … Não faço exercícios e sou cabulona. Os meus cadernos, de ponta a ponta são um só borrão e a minha bata tem muitas casas, mas um só botão…
Curiosamente, voltei a ver a Manuela. Voltei a vê-la numa ocasião especial, voltei a vê-la acidentalmente, com pompa e circunstância. Quis o destino que eu voltasse a vê-la, triunfante, no Festival RTP da Canção no ano de 1979. Manuela Bravo…

Já no 2º período, quando tudo corria dentro da mais tranquila normalidade, um falso alarme veio provocar o alvoroço e o caos. Red alert! Por qualquer motivo, ainda hoje sem explicação, as aulas foram interrompidas a meio porque a Fábrica de Pólvora de Barcarena ia explodir!... (ocorreram, de facto, várias explosões dramáticas, sendo a última em 1972).

O pânico instalou-se entre professores e alunos. A palavra de ordem era FUGIR! No meu entender, uma detonação numa fábrica de pólvora era o Apocalipse, mas nunca me passou pela cabeça que pudesse perder a vida nessa alarmante explosão porque depois de ter alcançado penosamente a saída do liceu, voltei a entrar! A verdade é que contra ventos e marés, enquanto todos se encaminhavam aos tropeções para a saída, eu travava um combate persistente em sentido contrário para chegar ao pavilhão e à sala de aula de onde tinha, minutos antes, saído. Ok, a fábrica ia explodir, era uma calamidade, a escola podia desaparecer do mapa, o meu coração batia descompassado, mas bolas… eu não ia morrer e o casaco, que deixara esquecido na sala, ia fazer-me falta!... Peguei no casaco e, empurrada pela massa de alunos que tentava chegar à única porta de saída que existia, juntei-me à multidão que fugia. Neste êxodo, tive um contratempo que mais tarde me fez rir, mas que atrapalhou imenso a minha caminhada. Os sapatos que eu tinha calçado não eram meus… no intervalo, tinha trocado de sapatos com uma colega que calçava o número acima! Mais espinhosa foi a caminhada dela porque levava os meus sapatinhos e teve que se descalçar…
Não me recordo se a notícia foi divulgada na rádio, supostamente o meio de comunicação mais rápido na época, mas revivo a cara de alívio e satisfação da minha mãe quando me viu. Agora que penso nisso, será que ficou contente apenas por me ver ou por constatar que eu trazia o casaco?...

(continua...)

Nota: Risquei a frase entre parênteses porque, depois de meditar no assunto, cheguei à conclusão (confirmada) que, embora o facto corresponda à verdade, não teve lugar em 1967, mas sim no Verão de 1966, tendo o meu avô falecido a 25 de Outubro desse ano.

Imagens cedidas "gentilmente" pela NET, Arquivo Fotográfico de Lisboa e Paulo Freire, e "gentilmente" gamadas por mim.

7 comentários:

Edite disse...

Gostei de recordar estas passagens de um tempo já tão longínquo, mas em que cada momento tinha a magia da descoberta e da aventura. Lembro os campos cobertos de papoilas e uma professora de francês que ofereceu a cada aluna um pequenino conto infantil com uma dedicatória. Recordo também um professor de inglês que tocava o disco do West Side Story, creio que se chamava Alberto. E igualmente não posso deixar no esquecimento os bilhetinhos, que os rapazes deixavam debaixo do tampo das carteiras, para as meninas lerem quando regressavam às aulas a cada manhã...
Obrigado por compartilhar estas memórias.

Pezinhos na Areia disse...

Fico feliz por saber que, tal como eu, há pessoas que gostam de recordar...
Obrigada Edite.

Um abraço

leoramon disse...

Passei por este blog porque também fui aluno no Passos Manuel de Massamá. Também me lembro dos bilhetinhos que deixava debaixo do tampo da carteira para as meninas lerem no outro dia de manhã. São dias inesquecíveis que já lá vão mas que nunca se esquecem. andei no liceu de 66 a 69, quando os meus pais me levaram para a américa. enfim, o mundo dá muitas voltas ...
antónio manaia, évora

leoramon disse...

Também eu andei no passos manuel e lembro-me de deixar os bilhetinhos debaixo do tampo da carteira para as meninas lerem no dia seguinte. tempos que já lá vão e que não voltam mais. andei no liceu de 66 a 69 e depois fui para a américa com os meus pais. enfim, a vida dá muitas voltas ...
antónio manaia, évora

Pezinhos na Areia disse...

Olá António,

Andei no Passos Manuel (secção de Massamá)nos anos lectivos de 1967/68 e 1968/69, o que quer dizer que os nossos caminhos se cruzaram por lá...mas nesse tempo não existiam turmas mistas, rapazes para um lado, raparigas para o outro, não era?...

Obrigada por aparecer.

F.Castro

Avozinha disse...

Procurava a data deste hipotético e aterrorizante epísódio! Obrigada! Eu, mais velha, era estudante universitária, e escapei à onda de choque na Amadora, nas aulas da Faculdade. Ainda há dias, a minha irmã me contava que ela e os meus pais decidiram fugir em direcção a Benfica, como todos faziam. Na rua encontraram uma velha amiga missionária, já viúva, que lhes declarou que ia fugir coisa nenhuma, ia só tomar um cafezinho... Foi isso que os levou a voltar para casa! Chamava-se essa senhora D. Prelediana Frias de Oliveira e era brasileira. Por querer escrever algo sobre esta saudosa senhora é que eu procurava a data...
A propósito: colega da Manuela Bravo foi também uma amiga minha, Maria Rosa Valente, que foi dona do Colégio Almeida Garrett, na estação de Queluz. O mundo é pequeno... Obrigada!

Pezinhos na Areia disse...

Olá Avozinha...
Por fortes razões pessoais só hoje voltei ao blogue.
Gostei muito de saber que a ajudei na procura da data, quanto ao nome Rosa Valente, nada me diz, mas talvez se a visse a reconhecesse...
A filha de uma colega de trabalho andou nesse colégio até ao 4º ano, terei que lhe perguntar se ainda era esse o nome da dona.
Grata pelo seu comentário
FC