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domingo, 30 de julho de 2017

Deus quer, a Mulher sonha, e a cozinha nasce…


Sinopse
Alma cozinha, pensa e escreve. E faz tudo isso com o auxílio dos temperos: ora caril, ora paixão, ora açafrão, ora emoção. A comida nasce do seu encontro com a vida, e os alimentos são as ferramentas que cozinham as suas conclusões. Ao abrir este livro encontrará receitas completas, saudáveis e alternativas, que poderão ser colocadas em prática. Para isso, apenas precisa deixar-se temperar pelas palavras, sentimentos e emoções que as descrevem. Conheça Alma e os seus temperos e, quem sabe, talvez a sua vida ganhe outro sabor, e a sua cozinha outro valor.


A pedido de uma amizade, comecei a ler Temperos com Alma. Confesso que iniciei a leitura com um certo cepticismo. A primeira frase da introdução, Se gosta de romance e de cozinha, encontrou o seu “prato” perfeito, não me pareceu um ingrediente estimulante nem apurou o meu desejo de continuar a ler. Primeiro, porque cozinhar é um verbo que não aprecio conjugar, particularmente na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, “eu cozinho”. Segundo, porque a minha paciência para assuntos relacionados com a nutrição é quase zero. É a minha “intolerância alimentar”, caracterizada pela incapacidade de digerir determinadas normas alimentícias e dietas saudáveis. Esta incapacidade deve-se à falta de disciplina alimentar ao longo dos anos, padrões alimentares errados e ditados populares que nos foram embutidos desde tenra idade, como, por exemplo, o que sabe bem, ou faz mal ou é pecado; peixe não puxa carroça; morra Marta morra farta; o que não mata engorda; quem não presta para comer, não presta para trabalhar.
No entanto, como sei que a paciência é amarga, mas o seu fruto é doce, virei a página, convicta de que não me iria deixar convencer por conselhos alimentares, e mergulhei, qual casca de limão, na água morna que Alma tinha ao lume para fazer arroz doce… O movimento da colher de pau envolveu-me num turbilhão delirante de palavras mágicas, cozinhadas sabiamente em lume brando e, nesse instante, percebi que, afinal, o livro tinha miolo, melhor, parecia ter um recheio apaixonadamente cremoso de sabores, cheiros e sensações. Costumo pensar que o que é cerebral me fascina mas, na realidade, a minha verdadeira vida é a dos sentidos. Com esta ideia e a proeza do arroz doce, que me amaciou o espírito e aguçou o apetite, continuei a leitura.
Fiquei a saber que o ácido málico da maçã contribui para o bom funcionamento da vesícula e confirmei que esta namora às escondidas com o fígado. Já suspeitava disso, desde que a minha vesícula começou a andar “pedrada”. Pedras filosofais em “bebedeiras de azul”, só pode ser paixão… Revi-me na Cebola que depois de cozinhada fica doce, tal como eu fico mais apurada com o cozinhar do tempo; assemelho-me a um Pickle e sou tal e qual o Risoto, não gosto de esperar…
Nunca me tinha passado pela cabeça que um Assado de Legumes com Alecrim podia ser um baile ou que a amizade é como a Sopa da Abundância, mas, embebida nesta feitiçaria culinária, fui compreendendo que cozinhar é muito mais do que fazer comida, é criar arte e poesia, amor e fantasia. E, talvez porque uma folha de hortelã parece ter o dom de abrir um espaço na mente que nos transporta para outros lugares, imaginei-me a apreciar uma tela com o Empadão de Millet, num qualquer museu do mundo, ou a gargalhar com a Tarte de Cuscuz num número acrobático circense, aplaudida pelas equilibristas Sementes de Alfafa…
Como as palavras são como as cerejas, malabarista é também a autora, que, num jogo caleidoscópico de palavras, ligou de forma harmoniosa e suculenta os alimentos, os sentimentos e as emoções, personificando-os e aromatizando-os até estarem no ponto perfeito. Numa palavra, delicioso. Em duas, deliciosamente divinal!
Temperos com Alma é um eufemismo total. A ideia, para mim desagradável, de cozinhar, é aqui apresentada de uma forma suave e encantadora, salpicada de temperos e aromas. 
Fechei o livro, aliás, “selei-o”, para ele manter toda a sua suculência.   
Sei que a vida é como uma comida que não conhecemos, se não experimentarmos nunca saberemos o seu sabor! Sei que todo o burro come palha, o que é preciso é saber dar-lha, mas como o dizer e o fazer não comem à mesma mesa, não poderei afirmar que irei, resolutamente, alterar os meus hábitos alimentares depois da leitura deste livro, pois a probabilidade de falhar é grande e poria em risco a minha palavra. Não se trata de uma desconsideração, mas um contra-senso, que assumo, mas me ultrapassa, e um desacerto temporal com o meu tempo interior… Serei absolvida por ser esta a minha verdadeira essência? Há quem tempere com alma, eu realço o sabor da vida à minha maneira, de queda em queda, passo a passo, entre umas lágrimas de sal e umas risadas de picante, dissolvidas no dia-a-dia…
Temperos com Alma, um livro que se lê num fôlego, ou será que deveria dizer, numa garfada? 

domingo, 16 de julho de 2017

Da literatura para a tela

A HBO e o canal de televisão italiano RAI uniram-se na produção da adaptação da tetralogia da escritora napolitana Elena Ferrante ao pequeno ecrã.
A primeira série de oito episódios será sobre o livro “A Amiga Genial” e está já a ser escrita por Francesco Piccolo, Laura Paolucci e Saverio Constanzo, contando igualmente com a colaboração da escritora, cuja identidade real não se conhece até hoje. Segundo Constanzo, a colaboração de Ferrante será fundamental na adaptação do livro à televisão pois pode revelar, «na primeira pessoa,  coisas que são muito íntimas, arriscadas, coisas que todos nós sentimos mas que temos receio de admitir». O realizador afirma ainda que irá realizar a série de TV como se de um grande filme de cinema se tratasse, dado o carácter cada vez mais cinematográfico das séries de TV atuais.
Como seria de esperar, a série será gravada em Itália com a produção da Wildside (que também produz a série “The Young Pope” para a HBO) e da Fandango. Prevê-se que as filmagens comecem já este Verão, com o lançamento previsto dos primeiros episódios da série para 2018. Os restantes livros da tetralogia, “História do Novo Nome”, “História de Quem Vai e de Quem Fica” e “História da Menina Perdida”, serão igualmente realizados por Constanzo, num total de 32 episódios.

sábado, 15 de julho de 2017

Livros e Mar: eis o meu elemento! (80)

Antes de Elena Ferrante se tornar um sucesso no panorama literário mundial, já a minha filha A. se tinha antecipado e recomendado insistente e entusiasticamente o primeiro volume da tetralogia.  A saber: A amiga Genial, História do Novo Nome, História de Quem Vai e de Quem Fica e História da Menina Perdida (a quem interessar, recomendo as sinopses da Relógio d’Água).
Elena Ferrante continua a ser um pseudónimo, pois a autora nunca aceitou revelar a sua identidade, embora muitos tentem, conjecturando, descobrir quem é realmente Ferrante, e se é mulher ou homem. Pessoalmente, é-me indiferente, não tenho curiosidade em olhar “pelo buraco da fechadura”, não tenho particular interesse pela vida da autora.  
Elena Ferrante terá dito, numa entrevista via mail para Il Corriere della Sera, “não me arrependo de meu anonimato. Descobrir a personalidade do escritor através das histórias que propõe, das suas personagens, dos objectos e paisagens que descreve, do tom da sua escrita, não é mais nem menos que um bom modo de ler”. Estou de acordo. O que ganho em saber se viveu na Grécia, se é casada, se tem filhos, se é tradutora ou se enriqueceu? Nada, o que me desperta interesse é a obra, o resto são suposições que não acrescentam mais-valia ao trabalho literário. Li há tempos uma frase que julgo oportuno mencionar: O autor morre quando põe o ponto final. O leitor nasce a seguir. Na muche! E como leitora desta tetralogia tenho uma palavra para a definir: obra-prima!
A tetralogia foca-se na vida de duas personagens, a narradora, Elena Greco (Lénu ou Lenuccia), e a sua amiga de infância, Raffaella Cerullo (Lina ou Lila), ambas nascidas, em 1944, num bairro pobre de Nápoles, e acompanha-as durante sessenta anos. No entanto, todas as outras personagens que as rodeiam, com as suas diferenças e semelhanças, são relevantes na narrativa e acabamos por nos envolver, numa intimidade fascinante, na vida destas famílias.

Italian women and children in Naples by George Rodger, 1944

Antes de nos levar para Nápoles do pós-guerra, Elena Ferrante inicia o primeiro volume da tetralogia com um prólogo sobre um acontecimento no tempo presente. Rino, filho de Raffaella Cerullo, telefona a Elena Greco informando-a que a sua mãe tinha desaparecido sem deixar rasto, levando roupas, sapatos, livros, fotos, documentos, enfim, tinha desaparecido com todo o seu passado . Elena sabia que esse era um antigo desejo de Lila, “queria volatizar-se; queria que todas as suas células desaparecessem; que dela não fosse possível encontrar nada”.
E como a conheço bem, ou pelo menos creio que conheço, tenho como certo que encontrou a maneira de não deixar em parte nenhuma deste mundo nem um cabelo. Lila está a exagerar, como é costume, pensei. Estava a dilatar excessivamente o conceito de rasto. Agora, aos sessenta e seis anos, não só queria desaparecer como também apagar toda a vida que deixara para trás. Senti‑me deveras irritada. Vamos ver quem vence, desta vez, disse para mim. Liguei o computador e comecei a escrever os pormenores da nossa história, tudo aquilo que me ficara na memória.
Foram as palavras finais do prólogo que despertaram a minha curiosidade. O que poderia ter acontecido anteriormente para Elena Greco querer impedir ardentemente a ambição da sua amiga de infância? A partir daqui fiquei viciada em Ferrante e cativada pela narrativa até à última página do quarto volume, pelo qual esperei ansiosamente. Numa escrita simples, mas intensa e cortante, a autora aborda e explora questões como a condição feminina numa sociedade patriarcal, a desigualdade entre homens e mulheres, o casamento, a maternidade, a sexualidade, a sobrevivência das classes desfavorecidas, a riqueza intelectual, os movimentos sindicalistas, as ideologias e radicalismos políticos, a Camorra, enfim, um leque magnífico e diversificado de temas em que as personagens se envolvem e me envolveram.
A leitura desta tetralogia foi um verdadeiro carrossel de emoções antagónicas e absorventes, difícil parar de ler e largar as personagens com as quais me identificava, diferenciava, indignava, zangava ou comovia. Fechei o quarto e último volume com tristeza, como se perdesse para sempre a intimidade que, ao longo da narrativa, me prendeu a Lénu e a Lila.  Fechei o quarto e último volume há um ano e meio e até hoje não consegui encontrar um livro que me atraia, ou por outra, nem tenho conseguido ler, o que me deixa muito apreensiva… Penso que nunca mais na vida vou ler nada tão bom, que não vou encontrar leitura superior a esta. Foi, sem dúvida, a leitura mais marcante da minha vida. Quanto a Elena Ferrante, a ilustre desconhecida, está num patamar único e, seja ela quem for, deixou-me a pensar com os meus botões: Caraças! Como é que ela conseguiu escrever estes livros tão fora de série? Bravo! Tiro-lhe o chapéu, indiscutivelmente magistral! 

Nota: o entusiasmo à volta da tetralogia foi de tal ordem que chegámos a fazer uma tertúlia familiar numa esplanada…

domingo, 13 de outubro de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (79)

Madrugada Suja não é uma obra baseada em factos reais, é pura ficção. No entanto, não posso dizer que qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência porque o autor nos mostra um retrato notável da sociedade portuguesa, pós 25 de Abril até aos dias de hoje. Chamar “os bois pelos nomes” é apanágio do autor e em Madrugada Suja não é diferente. Muitas das passagens são testemunhos exemplares do que, lamentavelmente, se passa no nosso país.
Nas primeiras páginas, um grupo de jovens estudantes alcoolizados passa todos os limites, os acontecimentos precipitam-se, e o que não devia passar de uma vulgar e divertida noite de copos transforma-se numa fatalidade. O que se passou nessa madrugada torna-se num pesadelo que irá perseguir os jovens, envolvidos no acontecimento, durante anos.
Através de uma narrativa alternada de três gerações, vamos conhecendo os protagonistas da história, habitantes de uma aldeia do interior alentejano que aos poucos vai ficando despovoada até ficar apenas um morador, o avô de Filipe. O jovem deixou a aldeia para se instalar no litoral alentejano e trabalhar numa autarquia local, como arquitecto. Por força do exercício das suas funções, Filipe vê-se perante um caso de corrupção que o leva a regressar ao passado, além de o conduzir pela promiscuidade dos políticos e manobras ilícitas dos autarcas, ao mesmo tempo que se questiona sobre os valores morais e a integridade.

[…] Fora a época dourada dos grandes dinheiros europeus, em que bastava apresentar um projecto e Bruxelas financiava. Os governos projectavam, construíam, mostravam, ganhavam eleições. A banca intermediava, comissionava, cobrava, prosperava. O PIB crescia, os imigrantes afluíam e não havia credores à vista: só os parvos desconfiavam de tanto “desenvolvimento”. […] […] Todos estavam endividados, mas felizes: o Estado, as autarquias, os cidadãos. […]

Extra análise do livro:
Agora, pagamos pelos erros cometidos e pelos que se continuam a cometer. Pagamos pelo dinheiro da UE que estes senhores desbarataram fraudulentamente, beneficiando algumas “máfias” e amigos, pagamos as subvenções escandalosas, os Institutos e Fundações ineficazes e inúteis, os custos com a Presidência da República e a Assembleia, as viaturas de luxo, os vencimentos dos políticos, os escabrosos financiamentos dos partidos políticos, enfim, pagamos os interesses pessoais de quem nos governa há anos passando por cima dos interesses do povo e do país, uma corja de manhosos e de aldrabões.
Como alguém disse, e eu subscrevo, só na Ditadura as Contas Nacionais estavam “certas ao tostão”…

madrugada-suja

No princípio, há uma madrugada suja: uma noite de álcool de estudantes que acaba num pesadelo que vai perseguir os seus protagonistas durante anos. Depois, há uma aldeia do interior alentejano que se vai despovoando aos poucos, até restar apenas um avô e um neto. Filipe, o neto, parte para o mundo sem esquecer a sua aldeia e tudo o que lá aprendeu. As circunstâncias do seu trabalho levam-no a tropeçar num caso de corrupção política, que vai da base até ao topo. Ele enreda-se na trama, ao mesmo tempo que esta se confunde com o seu passado esquecido. Intercaladamente, e através de várias vozes narrativas, seguimos o destino dessa aldeia e em simultâneo dos protagonistas daquela madrugada suja e daquela intriga política. Até que o final do dia e o raio verde venham pôr em ordem o caos aparente.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (78)

Os livros são como as pessoas, temos a capa e o miolo. Há indivíduos exteriormente encantadores com um cérebro de fugir a sete pés. Há pessoas que “vestem mal de cara” e se revelam interessantíssimas. Há ainda os que são bonitos por fora e por dentro. Com os livros passa-se exactamente o mesmo.
Há capas excelentes que encerram narrativas banais e capas menos boas que contêm verdadeiras obras-primas da literatura, mas, como já aqui referi, deixo-me seduzir com facilidade por algumas capas. Por vezes, não compro o livro, compro a capa, particularmente, quando não conheço o autor, e seria, seguramente, o que aconteceria com O Livreiro, mas as minhas filhas anteciparam-se e ofereceram-mo.

A capa, sóbria, mostra uma enigmática figura de costas, tendo Paris e as margens do Sena como fundo, um livro aberto que pressagia um segredo e, a rematar, a suástica e as sugestivas frases “Um livro raro”, “Um sobrevivente do Holocausto” e “Uma história perfeita para todos os que gostam de livros”. Mark Pryor, o autor, é um estreante. Estariam reunidas as condições para eu comprar o livro, mesmo correndo o risco de estar a adquirir um fiasco, mas O Livreiro é um daqueles livros “double face”, bom por fora e por dentro. No entanto, errei ao pensar que seria mais um livro sobre o Holocausto, uma matéria já muito batida, mas que ainda continua sombriamente a despertar a minha atenção. Talvez por ter partido dessa ideia errada, senti um pequeno desapontamento quando me apercebi que Pryor abordou ao de leve o tema, servindo-se dele exclusivamente como contexto. Tirando a minha desilusão, fruto da minha interpretação errada, a leitura é muito agradável, espirituosa e descontraída, embora, no desenrolar da acção, aconteçam várias mortes.
Hugo Marston, chefe da segurança da embaixada americana em Paris, assiste impotente ao rapto do seu amigo Max Koche, um idoso vendedor de livros antigos nas margens do Sena, pouco depois de lhe ter comprado um livro raro. Marston inicia então uma investigação com a ajuda do seu amigo Tom, um agente da CIA, destinada a encontrar o livreiro. Nessa demanda, descobre que Max é um sobrevivente do Holocausto que mais tarde se converteu num caçador de nazis.
Tendo como cenário a Cidade Luz, confesso que o que mais me atraiu nestas 345 páginas não foram as personagens nem a teia em que estas se movem, mas sim a forma como o autor descreve e detalha o mundo dos livros usados e dos alfarrabistas (neste caso, os bouquinistes que têm as bancas nas margens do rio Sena) e os meandros de uma actividade que tanto me fascina. O meu agradecimento ao autor por me ter guiado pelo mundo dos alfarrabistas.

livreiro
Neste romance de ritmo acelerado e empolgante (que prenderá os leitores da primeira à última página), encontramos a história de um terrível segredo escondido durante décadas nas páginas de um livro há muito desaparecido.
Hugo Marston decide comprar um livro raro ao seu amigo Max, o idoso proprietário de uma banca de obras antigas. Poucos minutos depois, Max é raptado. Vivamente surpreendido com o ato, Marston, chefe de segurança da embaixada americana em Paris, nada consegue fazer para impedir o raptor. Marston inicia então uma investigação destinada a encontrar o livreiro, recrutando a ajuda do seu amigo Tom, um agente da CIA.
A busca de Hugo revela que Max é, afinal, um sobrevivente do Holocausto que mais tarde se converteu num caçador de nazis. Estará o rapto ligado ao sombrio passado de Max ou aos misteriosos livros raros que vendia?

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (77)

O Palácio da Meia-Noite faz parte, com O Príncipe da Neblina, Marina e As Luzes de Setembro (ainda não publicado em português), de uma série de romances juvenis escritos no início da carreira de Carlos Ruiz Zafón. Independentemente de alguns erros, que ele agora encontra nestas obras por falta de experiência literária, estas histórias de mistério e aventura converteram à leitura numerosos leitores jovens, facto que muito agradou ao autor.
Também eu teria sido sua seguidora incondicional, caso Zafón fosse um autor de literatura juvenil no início da década de 70. Assim como Enid Blyton foi fundamental no desenvolvimento da minha paixão pela leitura, Zafón teria sido, a par de Blyton, um dos meus autores de eleição e seria, nos dias de hoje, uma referência obrigatória da minha adolescência.
Se Enid Blyton me brindou com Os Cinco nos Rochedos do Demónio, Zafón presenteia-me com O Palácio da Meia-Noite. Se Enid Blyton me brindou com passagens secretas, catacumbas, ilhas misteriosas, torres assombradas, lingotes de ouro, castelos em ruínas, contrabandistas e malfeitores, Zafón presenteia-me com grandes enigmas, cenários sombrios, ideias fantasmagóricas, almas perdidas e espectros do passado que vivem entre a vida e a morte, numa espécie de limbo. Tenebroso, como só Zafón consegue ser…
A acção de O Palácio da Meia-Noite passa-se na enigmática cidade de Calcutá, na Índia, em 1932, embora o início do livro nos transporte a um acontecimento inquietante em Maio de 1916. Um tenente inglês luta para salvar a vida a dois bebés órfãos de uma terrível ameaça. Perde a vida, mas consegue pô-los a salvo. No entanto, a separação dos bebés é necessária para que se mantenham vivos e um deles é deixado pela avó no orfanato St. Patrick’s ao cuidado do senhor Thomas Carter. O outro bebé…ah, não vou contar já…
Ben, assim se chama o órfão de St. Patrick’s, forma, mais tarde, um grupo de amigos e um clube secreto, a Chowbar Society, que reunia num casarão abandonado e em ruínas a que chamavam orgulhosamente Palácio da Meia-Noite. Desta sociedade secreta fazem parte sete elementos (poderia ser o Clube dos Sete, de Blyton, mas, neste caso, sem outra família além deles mesmos e com membros muito mais estimulantes…).
O líder do grupo, Ben, é um rapaz de ideias extravagantes e humor cáustico que passa de períodos de hiperactividade a longos e tristes silêncios; Isobel, a única rapariga do clube, tem um dos melhores cérebros do grupo; Siraj, de saúde frágil, possui uma memória enciclopédica e não há história macabra da cidade que ele não conheça; Roshan, prodigioso corredor e hábil serralheiro; Michael, desenhador, calado e melancólico; Seth, rapaz pouco sorridente, estudioso, devorador de clássicos e apaixonado por astronomia; Ian, o melhor amigo de Ben, tem apenas um sonho, vir a ser médico.
Para que a história que viveram não se perdesse para sempre, Ian empreendeu a tarefa de narrador e é através das suas palavras que tomamos conhecimento dos misteriosos e terríveis acontecimentos durante quatro dias, em 1932, ano em que todos eles completam 16 anos e terão que abandonar o orfanato…
O que aconteceu a Sheere, a irmã gémea de Ben? Bem, vou levantar uma ponta do véu. Depois da separação imprescindível dos irmãos (que só perceberão se lerem o livro…), Jawahal, o espectro do passado, nunca desistiu de os procurar e durante 16 anos Sheere e a avó fugiram pela Índia. Ao fim desse tempo, Sheere encontra-se com Ben em St. Patrick’s. Aryami Bosé, a avó, faltando-lhe a saúde e a coragem para combater forças tremendas e incompreensíveis, decide contar-lhes a história em que foram protagonistas sem o saberem. Na posse das terríveis confidências, os irmãos e a Chowbar Society vão enfrentar um mortífero, inacreditável e complexo mistério… Será que Ben e Sheere vão conseguir escapar à morte que os persegue? E quem será o sinistro Jawahal?
A magia de Zafón num emocionante mistério. Não aconselhável para cardíacos…

Planeta

No coração de Calcutá esconde-se um obscuro mistério...
Um comboio em chamas atravessa a cidade. Um espectro de fogo semeia o terror nas sombras da noite. Mas isso não é mais do que o princípio. Numa noite obscura, um tenente inglês luta para salvar a vida a dois bebés de uma ameaça impensável. Apesar das insuportáveis chuvas da monção e do terror que o assedia a cada esquina, o jovem britânico consegue pô-los a salvo, mas que preço irá pagar? A perda da sua vida. Anos mais tarde, na véspera de fazer dezasseis anos, Ben, Sheere e os amigos terão de enfrentar o mais terrível e mortífero mistério da história da cidade dos palácios.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (76)

Não sendo uma apaixonada fanática da saga de Harry Potter , confesso que vi todos os filmes (e nenhum me decepcionou) embora não tenha lido todos os livros. Apesar de a literatura fantástica não ser a minha praia, reconheço em J.K. Rowling uma capacidade tão incrivelmente criativa que conseguiu envolver-me no encanto e magia que estão presentes em toda a obra.
“Uma Morte Súbita” chamou-me desde logo a atenção. Rowling tinha abandonado a escrita fantástica e mudado o género literário. Da fantasia à realidade, assim, subitamente…O título, sugestivo, levou-me a pensar que seria de suspense, mas a sinopse surpreendeu-me ao revelar-me que a morte de Barry Fairbrother, que ocorre repentinamente, é que desencadeava todos os acontecimentos do livro.

A história passa-se em Pagford, uma pequena e pacata cidade onde todos se conhecem e a má língua impera. Barry Fairbrother, vogal da Assembleia Comunitária de Pagford, lutou sempre para que o problemático bairro de Fields, onde tinha nascido (e onde existe uma clínica de reabilitação de toxicodependentes), continuasse a fazer parte da cidade de Pagford. Apesar de ter um ou outro aliado, Barry tinha alguns membros da assembleia como fortes opositores e estes vêem na sua morte uma oportunidade para que Fields seja entregue à responsabilidade da cidade de Yarvil. Assim que o retrato de cada um dos candidatos à vaga deixada por Barry começa a ser traçado, compreendemos que todos têm telhados de vidro, todos têm problemas familiares e segredos que não querem ver revelados.
É durante a campanha eleitoral que os segredos, até ali tão bem guardados, dos candidatos e dos actuais membros, começam a ser revelados através de mensagens no fórum do antiquado site da assembleia… Aproveitando o facto de o site amador não estar protegido do mais simples dos clássicos ataques informáticos, as revelações bombásticas são feitas através do nome de código “O Fantasma de Barry Fairbrother”… Quem pretende vingança? Que motivos movem estes piratas informáticos?
Ao longo de quase 500 páginas senti-me como que uma observadora de uma cidade inteira, uma testemunha dos actos de cada habitante, uma espectadora que não consegue ficar indiferente às desigualdades sociais, aos conflitos conjugais e ao conturbado relacionamento entre pais e filhos. Convivi com os traumas dos personagens, os seus medos e frustrações, invejas e preconceitos, decepções e ressentimentos, drogas, marginalidade e bullying. É impossível ler “Uma Morte Súbita” sem tomarmos partido e torcermos por alguns personagens mesmo sabendo que os seus actos não são os mais correctos e sensatos, podendo mesmo dar origem a graves consequências…Muito rico em detalhes e personagens bem definidas e singulares, “Uma Morte Súbita” é um retrato chocante da sociedade, uma sucessão de acontecimentos que acabam por culminar em tragédia…

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Uma Morte Súbita é o primeiro livro para adultos de J. K. Rowling. Acolhido com enorme expectativa, este surpreendente romance sobre uma pequena comunidade inglesa aparentemente tranquila, Pagford, começa quando Barry Fairbrother, membro da Associação Comunitária, morre aos quarenta e poucos anos. A pequena cidade fica em estado de choque e aquele lugar vazio torna-se o catalisador da guerra mais complexa que alguma vez ali se viveu. No final, quem sairá vencedor desta luta travada com tanto ardor, duplicidade e revelações inesperadas?

domingo, 16 de junho de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (75)

Maria Filomena Mónica publicou, em 2005, a sua autobiografia ‘Bilhete de Identidade’, que pôs a nu uma vida intensa e cheia de convicções. Foi sempre da opinião que homens e mulheres têm direitos iguais.

Como era de esperar, em “Bilhete de Identidade”, Maria Filomena Mónica conta tudo e, como sabemos, ela é rebelde, descomplexada, destemida, sem preconceitos, sendo mesmo, às vezes, presumida e arrogante, adjectivos que suscitam opiniões muito díspares e algumas pouco agradáveis. Com Maria Filomena Mónica não há meio-termo, ou se gosta ou se detesta e eu encontro-me entre os primeiros.
Se já sentia admiração por ela, particularmente porque ela é tudo o que eu, lamentavelmente, não sou, a leitura desta obra autobiográfica, deixou-me completamente rendida. MFM conta a sua história de vida sem rodeios e lutou pela sua emancipação, numa época em que a mulher tinha um papel passivo e secundário na sociedade, numa época em que o Estado Novo tinha criado uma imagem da mulher idealizada pela moral e pela religião, numa época em que trabalhar fora do lar era uma ameaça à estabilidade familiar.
Em “Bilhete de Identidade”, Maria Filomena Mónica recorreu a diários e cartas que tinha guardado e a documentos que encontrou. Não se resguardou das críticas, não se preocupou com o seu estatuto social, nem ocultou os podres da família, como, por exemplo, que a mãe era filha ilegítima…
Como socióloga e investigadora, descreve, numa brilhante sucessão temporal de factos, os fenómenos sociais durante os regimes de Salazar e Caetano e após a revolução do 25 de Abril.
Uma autobiografia singular de uma mulher admirável.

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Num país sem tradição memorialista, no qual as poucas obras que existem representam a justificação de acções pretéritas, Maria Filomena Mónica procura apresentar a sua vida sem glorificações nem lamúrias. Não presume fornecer a verdade, mas apenas a sua verdade: outros terão olhado as pessoas, os acontecimentos e as peripécias, de que aqui nos fala, de forma diferente. Num país conservador, católico e hipócrita, o tom cru deste livro poderá chocar. Mas a intenção da autora não foi essa, mas sim a de tentar perceber, e dar a perceber, uma vida, uma família e um país, entre 1902, data do nascimento da sua avó, e 1976, o ano em que, após uma estadia no estrangeiro, regressou a Portugal.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (74)

Cinquenta mulheres foram enviadas para França como agentes secretas pelo Executivo de Operações Especiais durante a 2ª Guerra Mundial.
Trinta e seis sobreviveram à guerra.
As outras catorze deram as suas vidas.
Este livro é dedicado a todas, verdadeiras heroínas da SOE (The Special Operation Executive)

Ken Follett, o meu autor de eleição, mais uma vez a afirmar-se como mestre da ficção e do suspense. “Nome de código Leoparda” é mais um livro de Follett, baseado em factos reais, passado em plena 2ª Guerra Mundial. Desta vez, porém, não se centra apenas na espionagem, mas num tema pouco explorado ou aprofundado, as mulheres que o Executivo de Operações Especiais enviou para a França ocupada.
A acção desenrola-se no fim de Maio de 1944, duas semanas antes dos desembarques dos aliados na Normandia a 6 de Junho, conhecido por Dia D. Depois da Resistência Francesa falhar a destruição de uma central telefónica alemã instalada num castelo, a perigosa missão é entregue a um grupo de mulheres dos serviços britânicos. Adicionando a estes ingredientes, já por si explosivos, o facto de a equipa ser liderada por uma mulher, ou seja, exclusivamente feminina, é fácil imaginar que o enredo é surpreendente… “Leoparda” é o nome de código de Flick Clairet, a agente britânica que vai liderar cinco mulheres, o grupo “Gralhas” (Jackdaws, título original do livro), que, apesar de pouco homogéneo e do pouco tempo de preparação, terá um papel capital para o sucesso da operação, que vai contar, como seria de esperar, com um grão de areia na engrenagem, o coronel alemão Dieter Franck…
A par do suspense crescente e de tirar o fôlego, vamos conhecendo melhor as personagens, as suas paixões, os medos, inseguranças, coragem, crueldade, enfim, uma riqueza de sentimentos que nos acompanha até à última página.

leoparda
O Dia D aproxima-se. Os serviços britânicos têm de destruir o sistema de comunicações em St. Cecile para os nazis não terem tempo de reagir. Impõem-se medidas drásticas e Flick Clairet, uma jovem agente britânica, surge com um plano ousado: lançar-se de pára-quedas, em França, acompanhada por uma equipa exclusivamente feminina (Jackdaws) com o objectivo de se disfarçarem de empregadas de limpeza francesas e entrarem no castelo…
Delirante ou não, o plano parece ser a única alternativa. O certo é que Rommel nomeou o implacável coronel Dieter Franck para esmagar a resistência francesa. E ele já tem o seu primeiro alvo: Flick Clairet…

O filme francês de 2008, “Les Femmes de l'ombre”, embora não seja uma adaptação deste romance de ken Follett, retrata as heroínas da Special Operation Executive.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (73)

“Jesus Cristo bebia cerveja” (Prémios Time Out Lisboa 2012 - Livro do Ano) é o primeiro romance que li de Afonso Cruz, um autêntico homem dos sete ofícios. Escritor, ilustrador, músico, realizador de filmes de animação e produtor de…cerveja!
A minha estreia não podia ter sido mais prometedora. Gostei do estilo narrativo, das ideias singulares, dos argumentos convincentes e da descrição dos lugares. O enredo passa-se numa pequena aldeia alentejana, num passado pouco distante, mas completamente parado no tempo. Rosa, a protagonista da história, nunca teve uma vida afortunada, o pai enforcou-se, o avô atirou-se a um poço e a mãe fugiu de casa. O fio condutor da narrativa é o desgosto da avó de Rosa de morrer sem visitar a Terra Santa. À primeira vista parece um enredo vulgar, apesar de comovente, mas Afonso Cruz consegue, através da originalidade de carácter das personagens, que a narrativa tome um rumo imprevisto e insólito.
Como Rosa não pode levar a avó a Jerusalém, e lá diz o ditado “Quando Maomé não vai à montanha vai a montanha a Maomé”, o professor Borja arquitecta uma forma de trazer a Terra Santa à aldeia alentejana. Para que esta patranha colossal corra bem é necessário que a encenação seja perfeita, mas será que a avó de Rosa embarca na farsa? Posso levantar a pontinha do véu, dizendo que o bar de strip em forma de avião vai servir para transportar a velha senhora… Todos os pormenores são tidos em conta e o professor Borja, sem discussão possível, diz que “o que se bebia no espaço geográfico em que Cristo habitava era cerveja. O vinho era uma bebida de romanos, dos invasores. Cristo não iria beber a bebida dos ricos, dos opressores”.
E o que vai acontecer a Rosa? “É certo e sabido que o final feliz é uma invenção humana, uma necessidade de obliterar a morte. A vida nunca acaba bem”.

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Uma pequena aldeia alentejana transforma-se em Jerusalém graças ao amor de uma rapariga pela sua avó, cujo maior desejo é visitar a Terra Santa. Um professor paralelo a si mesmo, uma inglesa que dorme dentro de uma baleia, uma rapariga que lê westerns e crê que a sua mãe foi substituída pela própria Virgem Maria, são algumas das personagens que compõem uma história comovente e irónica sobre a capacidade de transformação do ser humano e sobre as coisas fundamentais da vida: o amor, o sacrifício, e a cerveja.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (72)

“Bilhar às Nove e Meia”, de Heinrich Böll (Prémio Nobel da Literatura em 1972), é um romance publicado em finais da década de 50. Ao ler a sinopse, pareceu-me uma história interessante.
Definitivamente, foi a gota de água que fez transbordar o copo… Deixei de acreditar nos premiados da literatura. Claro que a minha opinião sobre o autor é apenas baseada neste livro, claro que eu não sou nenhuma perita em literatura, claro que o facto de gostar muito de ler não me transforma numa pensadora nem numa pessoa culta, enfim, claro que eu sou uma básica e, felizmente para os laureados, não faço parte do júri da Academia Sueca.
Aliás, pensar que os Prémios Nobel da Literatura são sempre sinais de perfeição e sumidade é um engano, dizer que um Prémio Nobel da literatura é indício de excelência não é uma verdade absoluta, irrefutável ou intocável. Quando li “Os Anões”, do galardoado de 2005, Harold Pinter, compreendi que a atribuição de um Nobel da Literatura é baseada em opiniões, modos subjectivos de avaliação por parte dos membros da Academia.
“Bilhar às Nove e Meia”, a história de três gerações da mesma família, desiludidas com a vida antes, durante e pós guerra, é construída através das memórias e pensamentos dos personagens, que nos mostram facetas diferentes de cada um deles.
Congratulo-me por ter chegado ao fim do livro, regozijo-me pela minha coragem e pela “conquista” da página trezentos e três.
Böll pode ter sido distinguido com o maior prémio literário, pode ter todo o reconhecimento da Academia, mas a narrativa não me fascinou, a escrita é dura e a leitura foi penosa.

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Sob o microscópio da narrativa, inspeccionada de forma profunda e com um humor surpreendente é com a família Faehmel que Böll desenha o retrato de uma Alemanha que tenta recuperar da guerra. Personagem a personagem, sob o olhar impiedoso do narrador, constrói-se a paisagem da família estilhaçada pela guerra. No palco do romance vão surgindo as mais variadas figuras, da secretária intrometida ao assassino psicopata, o santo e o pecador, dos inocentes aos desiludidos; para todos a guerra veio criar um novo mundo perturbador onde os seus lugares sociais estão em causa.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (71)

“O Tempo e os Afectos”, de Helena Sacadura Cabral, é um livro que se lê de uma penada, sem qualquer esforço. Entre textos inéditos e outros já publicados, a autora expressa, mais uma vez, a humanidade e afectividade que caracterizam os seus escritos e com que já nos familiarizou. O estilo da escrita é peculiar e despretensioso, a forma de abordar os temas é terra a terra e invejável e as reflexões de uma enorme sagacidade.
O título é particularmente encantador e chamativo porque tanto o tempo como os afectos são fundamentais na nossa vida. Há muito tempo que deixei de valorizar os bens materiais, de me escravizar para os obter. Há muito que compreendi que o mais importante são as pessoas, a amizade, os sentimentos e os afectos. Quanto ao tempo, lamentavelmente é implacável e irrecuperável, mas haverá sempre tempo para a família e para os amigos, para ouvir, para pensar, para o companheirismo, para a lealdade, para rir, para chorar e para os afectos, que não morrem nunca…
Helena Sacadura Cabral tem todo o meu apreço. É um modelo de determinação, uma força moral, uma Mãe coragem, um exemplo de vida…

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No livro “O Tempo e os Afectos” o leitor encontra a verdadeira Helena Sacadura Cabral, uma mulher especial para quem a família está à frente de qualquer outra coisa.
Os países são compostos por famílias e estas são constituídas por pessoas. Que precisam, hoje mais do que nunca, duma economia de afectos por oposição à dita economia numérica. Será muito difícil compreender isto?

sábado, 9 de março de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (70)

“D. Maria II” Tudo por um Reino. Isabel Stilwell surpreendeu-me com este magistral e memorável romance histórico. Apesar de ser uma leitora assídua dos seus editoriais, enquanto directora do jornal gratuito Destak (que julgo ter perdido com a sua saída…), nunca tinha lido nenhum dos seus romances, shame on me
Fiquei de tal forma agradada com a sua escrita envolvente e simples, mas cuidada, que já adicionei os outros três romances históricos à minha lista (o problema é que esta não pára de aumentar…).
Recomendo sem reservas, sobretudo aos admiradores de narrativas históricas. E sou capaz de recomendar os outros de olhos fechados, ou seja, mesmo sem os ter lido… Para conhecimento, são eles: “D. Filipa de Lencastre”, “Catarina de Bragança” e “D. Amélia”.

Maria da Glória Joana Carlota Leopoldina da Cruz Francisca Xavier de Paula Isidora Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança foi a filha primogénita do imperador do Brasil D. Pedro I (D. Pedro IV de Portugal), e da arquiduquesa D. Leopoldina da Áustria. Maria da Glória nasceu em terras brasileiras em 1819 (a família real tinha fugido para o Brasil quando das invasões francesas), três anos antes do famoso grito do Ipiranga que deu a independência ao Brasil em 1822. Entretanto D. João VI morre e, em 1826, D. Pedro IV (apaixonado pelo Brasil e pela sua amante Domitília de Castro) opta por ser imperador do Brasil abdicando do trono de Portugal em nome da filha, Maria, apenas com sete anos, que cedo se foi preparando para ser rainha.
O casamento da jovem com o seu tio, D. Miguel, é combinado na esperança de que em Portugal a paz e a causa liberal pudessem triunfar, mas tal não aconteceu. Aos nove anos é enviada para a Europa para ser educada pelos avós maternos na corte austríaca, mas, durante a viagem, D. Miguel proclama-se rei absoluto de Portugal, e o seu tutor considera mais seguro rumar até Londres. Aí conhece a jovem Alexandrina Vitória, a futura rainha Vitória do Reino Unido, com quem, mais tarde, virá a trocar correspondência ao longo do seu reinado e através dessas cartas vamos tomando conhecimento das muitas crises políticas que Portugal atravessa, assim como das alegrias e dos dramas das duas famílias.
Em 1828, desencadeia-se uma guerra civil entre absolutistas, apoiantes de D. Miguel, e liberais, apoiantes de D. Maria, mas chefiados pelo próprio imperador do Brasil. As Guerras Liberais entre os dois irmãos prolongaram-se até 1834, ano em que os liberais conseguiram que D. Miguel renunciasse e partisse para o exílio e colocar definitivamente D. Maria no trono.
Casa, em 1835, com Augusto de Beauharnais, da Família Real da Baviera, que morre pouco depois. Novo casamento é negociado e a escolha recai sobre Fernando de Saxe-Coburg-Gotha, sobrinho de Leopoldo de Saxe-Coburg que ocupava o trono belga com o título de Leopoldo I. Fernando era primo de Alberto, que veio a casar com a rainha Vitória com quem teve 9 filhos.
O casamento político de D. Maria com Fernando de Saxe-Coburg-Gotha depressa se converteu num casamento por amor e deste matrimónio nasceram 11 filhos (quatro morreram à nascença), todos eles no Palácio das Necessidades, onde sempre viveram. D. Maria II morreu de parto aos 34 anos e D. Fernando assumiu a regência até à maioridade do primogénito, D. Pedro V, que reinou apenas 10 anos e como não deixou descendência sucedeu-lhe o irmão, D. Luís, pai de D. Carlos.
D. Fernando era um homem de grande cultura, evitava sempre que possível a política, preferindo dedicar-se às artes e foi um protector do nosso património. Atraído pela serra de Sintra, adquiriu as ruínas do Mosteiro de Nossa Senhora da Pena e áreas circundantes para aí edificar o singular e deslumbrante Palácio Nacional da Pena. O Pinheiro de Natal foi um costume introduzido em Portugal por D. Fernando que mandava decorar um abeto com velas, laços e bolas de vidro transparente.
O reinado de D. Maria II foi marcado por muitos confrontos e, na opinião de alguns historiadores, a rainha terá cometido erros graves como governante (não posso deixar de concordar porque depois de uma guerra civil para implementar a monarquia liberal, D. Maria II reinou de uma forma despótica, como uma monarca absolutista…). Exemplo disso é o facto de Costa Cabral, depois de nomeado ministro do reino, dominar toda a administração, chegando a colocar familiares em cargos considerados políticos (prática que dura até aos nossos dias…), e dominar mesmo a própria rainha que, apesar da revolta do povo e nem sempre ter o apoio do marido, continuou a protege-lo e deu-lhe o título de Marquês de Tomar.
No entanto, é impossível não admirar D. Maria II que, não obstante as crises políticas que assolaram o país, foi uma mulher de coragem que soube conciliar os assuntos de Estado com a vida familiar, nunca descurando nenhum deles.
Foi, para mim, fascinante ficar a conhecer a rainha Vitória, tão diferente de D. Maria II. Sem prepotência, mas com garra, conduziu os destinos do Império Britânico pedindo a opinião sobre as suas decisões aos ministros e ao marido, e durante o seu longo reinado o Império desenvolveu-se e consolidou-se.
Segundo a autora, a rainha D. Maria II e a rainha Vitória eram primas, mas não consegui encontrar a confirmação desse parentesco, a não ser por parte dos respectivos cônjuges que eram, de facto, primos direitos.

Nota: A leitura deste resumo não dispensa a leitura do livro…

Reino

Com apenas 7 anos, Maria da Glória torna-se rainha de Portugal. Um país do outro lado do oceano que nunca havia pisado. A sua infância foi vivida no Brasil, entre o calor e os papagaios coloridos que admirava na companhia dos seus irmãos e da sua adorada mãe, D. Leopoldina. A ensombrar esta felicidade apenas Domitília, a amante do seu pai, imperador do Brasil e D. Pedro IV de Portugal. Em 1828 parte rumo a Viena para ser educada na corte dos avós. Para trás deixa a mãe sepultada, os seus adorados irmãos e a marquesa de Aguiar, sua amiga e protetora. Traída pelo seu tio D. Miguel, que se declara rei de Portugal, e a quem estava prometida em casamento, D. Maria acaba por desembarcar em Londres onde conhece Vitória, a herdeira da coroa de Inglaterra a quem ficará para sempre ligada por uma estreita relação de amizade. Aos 15 anos, finda a guerra civil, D. Maria pisa pela primeira vez o solo do seu país. Seria uma boa rainha para aquela gente que a acolhia em festa e uma mulher feliz, mais feliz do que a sua querida mãe. Fracassada a sua união com o tio, agora exilado, casa-se com Augusto de Beauharnais que um ano depois morre de difteria. Maria era teimosa, não desistia assim tão facilmente da sua felicidade e encontra-a junto de D. Fernando de Saxo-Coburgo-Gotha, pai dos seus onze filhos, quatro deles mortos à nascença.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (69)

Esther Mucznik, estudiosa das questões judaicas, redigiu de forma exímia o livro “Portugueses no Holocausto”, baseando-se numa investigação profunda e cuidada.
As ideias fulcrais que retirei da leitura foram perturbantes. O anti-semitismo e a xenofobia estavam espalhados, não só na Alemanha, mas em vários países europeus; alguns governos colaboraram activamente com os nazis na “Solução Final”, ultrapassando mesmo as expectativas alemãs; a passividade com que o mundo permitiu o extermínio do povo judeu. Concluindo, se povos e governos se tornaram cúmplices destes crimes, a responsabilidade pesa sobre toda a humanidade.

portugueses

Editora: A Esfera dos Livros

[…] Este livro é dedicado a todos os portugueses que morreram no Holocausto, vítimas dos crimes nazis e, entre todos eles, aos descendentes de portugueses expulsos pela Inquisição refugiados em Amesterdão, Istambul ou Salónica. Salvaram-se das fogueiras da Inquisição mas não das câmaras de gás. Acreditaram que eram portugueses, mas Portugal não os reconheceu como tal. No momento em que precisavam desesperadamente da nacionalidade portuguesa, esta foi-lhes negada. […]
[…] …grande maioria dos refugiados que procuravam desesperadamente fugir da Europa ocupada, dos seus campos de morte e de trabalho escravo… […] eram indesejáveis em todo o lado, como o comprovou a Conferência de Evian convocada pelo presidente Roosevelt, em Julho de 1938, para solucionar o problema do acolhimento dos refugiados judeus da Alemanha. Na conferência, para a qual Portugal não foi convidado, participaram trinta e dois países, mas apenas um, a República Dominicana, se mostrou disponível para os receber. […] Hitler regozijou-se com esta atitude, destacando com cinismo o facto de os países criticarem a sua política relativamente aos judeus, mas nenhum deles abrir as suas portas para os acolher. […]
[…] Para o Führer, a indiferença do mundo face à sua política anti-judaica foi um claro sinal de que podia avançar com o seu sinistro plano sem nenhuma oposição de monta. […]
[…] … destaca-se uma ideia-chave: a força das convicções que animavam, não apenas os nazis, mas vastos sectores da sociedade alemã. A “Solução Final” não foi obra de um punhado de loucos e de monstros que decidiram de um momento para o outro varrer da face da terra judeus, comunistas, ciganos, homossexuais e deficientes. Não foi uma imposição ditatorial sobre uma população relutante e amedrontada. Foi uma tarefa colectiva levada a cabo com entusiasmo por milhares de pessoas que, voluntariamente, decidiram contribuir para a máquina de morte nazi, convencidos de que esse era o caminho necessário, justo e correcto para a Alemanha. […]
[…] O racismo e, muito especialmente o anti-semitismo são fenómenos muito anteriores a Hitler e ao nazismo mas foram o terreno fértil que alimentou o nacional-socialismo. Muitas pessoas culpavam os judeus pela derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial e por todos os males que se lhe seguiram. […]
[…] Hitler não trouxe qualquer originalidade ao pensamento político; trouxe, sim, originalidade de liderança. E os alemães viraram-se para ele na esperança de uma solução para os problemas do país. […]
[…]… a reflexão sobre o Holocausto e a forma como se processou leva-nos a uma conclusão assustadora: o genocídio nazi aconteceu não apesar do alto nível educacional, cultural e tecnológico da sociedade alemã, mas devido a ele. […]
[…] … isto não é apenas o resultado de espíritos toldados por uma ideologia assassina, mas também da acção conjugada de homens e mulheres dotados de elevadas competências técnicas em todos os escalões da sociedade. […]
[…] Mas o que também fica para a História é que, enquanto a Alemanha e os seus aliados consagraram grandes esforços e recursos para o extermínio do povo judeu e de muitos outros civis de convicções, religiões e etnias diversas, o mundo observava sem se comprometer. […]
[…] Como refere o historiador Ian Kershaw: “A estrada de Auschwitz foi construída pelo ódio, mas o seu pavimento foi a indiferença.” […]
[…] … Salazar, que acumulava as pastas de Presidente do Conselho, ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra teve conhecimento dos crimes nazis, através dos seus representantes diplomáticos espalhados pela Europa…[…]
[…] …Apesar disso, recusou-se a atender os pedidos desesperados dos quatro mil judeus descendentes de portugueses da Holanda, cuja vida acabou ceifada em Auschwitz, ou dos portugueses da Grécia e da Turquia a quem negou a nacionalidade que os poderia ter resgatado. […]
[…]…Portugal não sai pior no retrato do que os outros países neutros ou até, do que os próprios Aliados. […] Exceptuando a Dinamarca que defendeu e salvou efectiva e colectivamente a sua comunidade judaica, só já no final, quando o mal estava praticamente consumado e a derrota da Alemanha irreversível, é que os países neutros e os Aliados tomaram algumas iniciativas no que diz respeito ao salvamento de civis. Salazar não é uma excepção nas considerações de realpolitik que nortearam, na época, a política da grande maioria dos governos. […]
[…] À pergunta que nos surge constantemente ao espírito: “podia ter-se feito mais?”, não tenho dúvida em dizer que sim. […] …Tudo o que se fez representa necessariamente uma gota de água no oceano imenso e terrível daqueles por quem nada pôde ser feito. Portugal podia ter feito mais, o mundo podia ter feito mais, as próprias organizações judaicas internacionais, os judeus portugueses também. Mas não podemos mudar a história. Podemos apenas fazer os possíveis para que ela não se repita. […]

sábado, 12 de janeiro de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (68)

“Visibilidade”, de Boris Starling. Que mais posso dizer que não esteja na síntese? Se me esticar, estarei a contar demais…
O suspense é uma constante nos livros deste autor e, como apreciadora de policiais, li o seu primeiro romance, “Messias”, e “Tempestade”. De Starling falta-me apenas ler “Vodka”, que tem estado a aboborar numa das prateleiras desde 2009 porque as suas 674 páginas pesam na mala de quem, como eu, anda de transportes públicos…
Boris Starling, que trabalhou como repórter para o The Sun e para o Daily Telegraph e ainda para uma organização especializada em negociações com raptores e investigações confidenciais, usufruiu, nessas funções, de um manancial de conhecimentos e experiências que emprega de uma forma admirável nas suas narrativas.

Visibilidade

Em Dezembro de 1952, com as sombras da guerra a esbaterem-se e com a Guerra Fria cada vez mais quente, Londres viu-se envolvida numa combinação mortal de poluição com condições meteorológicas adversas que ficou conhecida como o Grande Nevoeiro sendo responsável por mais de 12000 vidas. Neste miasma, um homem encontra a morte, nas águas baixas e geladas da Long Water. Alguns dizem que estava apenas bêbado, vagueando no Hyde Park. Mas, para Herbert Smith, novo detective da Scotland Yard o corpo torna-se uma pista muito mais interessante ao descobrir que a sua morte não foi acidental. Era bioquímico, e poucas horas antes de morrer tinha reclamado estar na posse de um segredo que podia mudar o mundo.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (67)

Confesso que o entusiasmo que senti ao ler a sinopse de “Comboio Nocturno para Lisboa”, um dos maiores best-sellers europeus dos últimos anos, começou a desvanecer-se quando comecei a leitura. Apesar de a narrativa ser sólida e existir um fio condutor evidente, o escritor emprega uma linguagem demasiado pesada. Talvez por Pascal Mercier ser o pseudónimo literário do filósofo suíço Peter Bieri, o romance tem muitos pontos filosóficos sobre a morte, a solidão, a amizade, traumas, frustrações. O tema principal é imaterial, uma viagem em que a personagem principal questiona a sua existência.
Confesso, também, que sempre tive dificuldade em ajuizar conteúdos metafísicos, descobrir a essência das coisas, que é complicado questionar-me sobre as minhas decisões e angústias, que me deprime a introspecção, a descoberta do eu interior. Brincando um bocadinho, é assim como a geometria no espaço, transcende-me…
Apesar das duas confissões supracitadas, não escondo que acabei por gostar do livro. Nota-se que o autor tem alguma falta de conhecimento da realidade portuguesa no tempo do Estado Novo e trata com alguma “ligeireza” o regime salazarista, mesmo que, certamente, tenha feito recolha de dados, mas, tal como eu tenho dificuldade em compreender o impalpável, também se desculpa quem não viveu na ditadura…
A vida solitária e monótona de Raimund Gregorius, o protagonista da história, divorciado e professor de línguas clássicas num liceu em Berna, sofre uma mudança profunda quando um acontecimento insólito o faz largar a sua vida rotineira e partir num comboio nocturno para Lisboa. O encontro, num dia chuvoso, com uma mulher portuguesa que, prestes a saltar de uma ponte, desaparece depois de lhe escrever um número de telefone na testa, é o ponto de partida para a viagem. Evitando que salte, Raimund fica seduzido pela sonoridade das palavras da desconhecida que, questionada sobre a língua que fala, lhe diz ser português. Por casualidade, encontra, numa livraria espanhola, um volume editado em 1975 em Lisboa, com excertos filosóficos, intitulado “Um Ourives das Palavras” do português Amadeu Inácio de Almeida Prado. Tenta, recorrendo a um curso de português, traduzir passagens do livro e, fascinado com o que lê, resolve partir para Lisboa em busca de Prado. Já em Lisboa, descobre que Amadeu, um médico que se opunha ao regime de Salazar, faleceu em 1973, antes da Revolução de Abril. Começa, então, a procurar familiares, amigos e conhecidos que possam ajudá-lo a compreender a complexidade de Amadeu e a conhecer-se a si próprio…
E mais não conto!

Comboio nocturno

A sinopse apresenta uma falha. Amadeu Prado morreu antes da Revolução de Abril e não depois. Julgo que terão confundido o ano da morte com o ano da publicação do seu livro…

Tudo começa numa manhã chuvosa. Uma mulher prepara-se para saltar de uma ponte de Berna. Raimund Gregorius, um banal professor de grego e latim de 57 anos, evita o acto desesperado e fica surpreendido com o som de uma palavra. Português, responde ela, ao ser questionada sobre a língua que fala. Antes de desaparecer da história ainda tem tempo de escrever um número de telefone na testa deste míope professor que descobre, por acaso, um livro de um autor português, Amadeu Inácio de Almeida Prado, intitulado Um Ourives das Palavras. Sem conseguir explicar porquê, entra num comboio para Lisboa atrás deste médico que morreu 30 anos antes, em 1975, pouco depois da Revolução, numa descoberta do outro que acaba por ser uma descoberta de si próprio.
Amado pelos pobres que atendia de graça no seu consultório, Amadeu passa a ser rejeitado pelo povo no dia em que aceita tratar o "Carniceiro de Lisboa", assim conhecido por ser chefe da polícia política. Integrará posteriormente a resistência contra o regime de Salazar.
Porquê Portugal? Porquê a ditadura de Salazar? Estas são as perguntas mais feitas a um autor que admira Pessoa, "esse gigante da literatura", há mais de 20 anos, e escreve um livro do desassossego com a escrita de Prado a assemelhar-se aos textos do poeta português. Pela sua cultura, pela sua atitude de outros tempos, Raimund precisava de um ambiente de século XIX e Lisboa é a grande cidade europeia que mais se aproxima pelo seu aspecto, pela sua topografia, afirma Pascal Mercier, para quem a principal razão para escolher Lisboa e Portugal prende-se com o pai de Prado, um juiz em funções durante uma ditadura, mas que não trabalharia sob as ordens de Mussolini, Hitler ou Franco. "Salazar era diferente. Era um intelectual brilhante, era muito inteligente, culto, de uma brutalidade mais subtil que poderia seduzir pessoas como o juiz Prado e só nas ditaduras se dão as condições necessárias para tratar os problemas morais no contexto político."

Imprevisto singular: Quando Mercier/Bieri esteve em Lisboa pela altura do lançamento do livro, em 2008, fez um périplo pelos locais do romance acompanhado por um jornalista e um fotógrafo do jornal Expresso. Junto ao Arco da Rua Augusta, no momento em que o fotógrafo capta as últimas imagens do escritor, surge das arcadas uma mulher, Comboio Nocturno para Lisboa debaixo do braço. “Desculpe, o senhor é o autor deste livro, não é?” E o autógrafo já não escapa. Mercier sorri, ao ver a leitora a afastar-se, tão incrédula quanto ele. “Coisa incrível, não acham? Quem é que explica acasos destes?” Ninguém. Mas Amadeu de Prado, que na Lisboa ficcional do escritor suíço morreu ali a dois passos, era bem capaz de tentar.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Livros e Mar: eis o meu elemento! (66)

Victoria Hislop, autora do bestseller “A Ilha” e de “O Regresso” está de volta com “A Arca”. Os livros de Hislop têm sempre uma componente histórica que me agrada bastante. Uma parte da acção de “A Ilha” passa-se na Segunda Guerra Mundial, com várias operações das tropas alemãs contra Creta. “O Regresso” tem como cenário a Guerra Civil Espanhola.
“A Arca” é um romance que nos dá a conhecer uma parte importante do passado histórico recente da Grécia, particularmente da cidade de Tessalónica e de todas as fatalidades e catástrofes que a devastaram. O grande incêndio em 1917, em que a maior parte da cidade foi destruída; o acolhimento aos gregos exilados de Esmirna em troca dos turcos que viviam em Tessalónica, depois da Guerra Greco-Turca 1919-1922; a ocupação alemã em Abril de 1941; as terríveis dificuldades da população civil; a deportação dos judeus para campos de concentração e de trabalho; o extermínio de mais de 90% da população judaica até 1944, ano em que os alemães deixaram a Grécia; a economia do país em ruínas; o sismo em 1978. Tudo isto é narrado de uma forma eloquente ao longo de 400 páginas.
A narrativa começa em 2007 com Dimitri e Katerina, os protagonistas, a contarem ao neto a sua história e as razões que os levam a querer ficar na cidade até à morte, depois de ele os tentar persuadir a ir viver com o filho em Londres. A autora transporta-nos, então, até ao ano de 1917 em Tessalónica…
Com a mestria a que já nos habituou, Victoria Hislop conta-nos como Dimitri e Katerina se conheceram, cresceram juntos e a sua história de amor atribulada, tendo como pano de fundo uma cidade atingida por sucessivas devastações e transformações, onde muçulmanos, judeus e cristãos vivem lado a lado numa perfeita harmonia, criando laços de amizade e interdependência, esquecendo as suas diferenças. E é em nome dessa amizade que são convictos e fiéis depositários de tesouros judeus assegurando que, paralelamente à destruição de vidas, os alemães não destruam ou se apoderem de uma parte da história judaica.
Depois de terem passado por todas as desgraças que assolaram o país e a cidade, depois de sobreviverem às suas próprias adversidades, não há nada que convença Dimitri e Katerina a abandonar a sua terra…
“Há mais uma coisa, para além das memórias, que guardamos para os nossos amigos. Eles também deixaram tesouros para trás. Ao canto da sala, coberta com um pano branco...estava uma arca de madeira...Esta é outra razão para termos ficado...estas coisas não nos pertencem...nós fomos meramente os guardiães.”

A Arca

Tessalonica, 1917. No dia em que Dimitri Komninos nasce, um incêndio devastador varre a próspera cidade grega, onde cristãos, judeus e muçulmanos vivem lado a lado. Cinco anos mais tarde, a casa de Katerina Sarafoglou na Ásia Menor é destruída pelo exército turco. No meio do caos, Katerina perde a mãe e embarca para um destino desconhecido na Grécia. Não tarda muito para que a sua vida se entrelace com a de Dimitri e com a história da própria cidade, enquanto guerras, medos e perseguições começam a dividir o seu povo. Tessalonica, 2007. Um jovem anglo-grego ouve a história de vida dos seus avós e, pela primeira vez, apercebe-se de que tem uma decisão a tomar. Durante muitas décadas, os seus avós foram os guardiões das memórias e dos tesouros das pessoas que foram forçadas a abandonar a cidade. Será que está na altura de ele assumir esse papel e fazer daquela cidade a sua casa?

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Livros e Mar: eis o meu elemento! (65)

“Deste lado da Luz” foi o primeiro livro que li de Colum McCann e, apesar de ter apenas 256 páginas, não achei de fácil leitura. Talvez por ser demasiado duro e sombrio, talvez por não estar predisposta a ler uma narrativa tão amarga sobre a condição humana sem um acontecimento que desse alento ao meu desalento. Deveria ter guardado esta leitura para uma ocasião mais propícia, mas a teimosia imperou e segui em frente. Errado! Vou remetê-lo para uma segunda leitura mais reflectida porque Nathan Walker e Treefrog merecem que eu veja luz onde só vi escuridão…

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Na viragem do século XX, Nathan Walker muda-se para a cidade de Nova Iorque para executar o trabalho mais perigoso do país: escavar o túnel sob o rio Hudson que servirá o metro entre Brooklyn e Manhattan. Nas entranhas do leito do rio, os trabalhadores - negros, brancos, irlandeses e italianos - escavam em conjunto, com a escuridão a ocultar as diferenças. Mas, à superfície, os homens mantêm a distância até um acidente dramático num dia de Inverno forjar um laço entre Walker e os seus colegas que irá abençoar e ao mesmo tempo amaldiçoar três gerações.
Quase noventa anos depois, Treefrog encontra os mesmos túneis e cria um lar no meio de drogados, alcoólicos, prostitutas e criminosos que constituem a comunidade esquecida dos sem-abrigo.
Deste Lado da Luz entrelaça factos históricos com ficção, criando uma história notável de morte, racismo, vida nas ruas… e amor - que abrange quatro gerações.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Livros e Mar: eis o meu elemento! (64)

“As Cinquenta Sombras de “Grey”. Anastasia Steele é uma estudante de literatura jovem e inexperiente. Christian Grey é o temido e carismático presidente de uma poderosa corporação internacional. O destino levará Anastasia a entrevistá-lo. No ambiente sofisticado e luxuoso de um arranha-céus, ela descobre-se estranhamente atraída por aquele homem enigmático, cuja beleza corta a respiração. Voltarão a encontrar-se dias mais tarde, por acaso ou talvez não. O implacável homem de negócios revela-se incapaz de resistir ao discreto charme da estudante. Ele quer desesperadamente possuí-la. Mas apenas se ela aceitar os bizarros termos que ele propõe... Anastasia hesita. Todo aquele poder a assusta - os aviões privados, os carros topo de gama, os guarda-costas... Mas teme ainda mais as peculiares inclinações de Grey, as suas exigências, a obsessão pelo controlo… E uma voracidade sexual que parece não conhecer quaisquer limites. Dividida entre os negros segredos que ele esconde e o seu próprio e irreprimível desejo, Anastasia vacila. Estará pronta para ceder? Para entrar finalmente no Quarto Vermelho da Dor? As Cinquenta Sombras de Grey é o primeiro volume da trilogia de E. L. James que é já o maior fenómeno literário do ano em todos os países onde foi publicado.

Críticas de imprensa
“De um dia para o outro, As Cinquenta Sombras de Grey tornou-se sensação entre o círculo das mães jovens e atraentes e chegou ao top dos bestsellers do New York Times. Este romance erótico pôs as gravatas cinzentas no primeiro lugar da lista de compras de muitas esposas, na esperança de que os respectivos maridos viessem a imitar a personalidade obsessiva, imperiosa e intimidante de Grey, com muitas a admitirem que o livro lhes despertou um desejo intenso por sexo com os companheiros.”
The Daily Mail

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“As Cinquenta Sombras de Grey”, primeiro volume de uma trilogia. 552 páginas explicitamente eróticas, a maioria delas muito pormenorizadas de sexo sem tabus. Bem-vindo ao mundo do sadomasoquismo! O dominador, Christian Grey, um jovem empresário lindo de morrer, podre de rico e com um passado obscuro. A submissa, Anastasia Steele, uma rapariguinha acabada de sair da universidade, virgem, naïf e com as hormonas aos saltos. Os muitos “diálogos” de Anastasia com a sua “deusa interior” são uma seca, tolos e atrofiados, oferecidos de bandeja pela autora. Oh my God… não há pachorra para tanta absurdez e falta de senso…
Esforcei-me para o ler rapidamente. Tive sucesso. Para tal contribuíram as muitas páginas de troca de e-mails entre os dois protagonistas.
Um fenómeno literário. Como? Tá tudo louco! Compreendo este sucesso de vendas porque sexo vende sempre, está garantido, e a autora, astuciosamente, com um enredo de cacaracá e uma escrita banal vai, certamente, constar na lista dos mais ricos. O que eu não entendo é a “corrida às gravatas cinzentas na esperança de que os respectivos maridos viessem a imitar a personalidade obsessiva, imperiosa e intimidante de Grey”. Não alcanço! Tenho uma mente aberta, mas há coisas que me ultrapassam… Como é que alguém pode aceitar ser subjugado e controlado obsessivamente e gostar? As mulheres de todo o mundo adoram Christian Grey? Ser enxovalhada em troca de momentos de prazer? Eu passo, incomoda-me, não tenho jogo…
Lembrou-me o que diz, na brincadeira, o marido de uma colega minha. “Nunca apanhaste, mas no dia em que começares a levar, não vais querer outra coisa”…

sábado, 6 de outubro de 2012

Livros e Mar: eis o meu elemento! (63)

“O Prisioneiro do Céu” é o terceiro volume de uma obra em quatro partes, sendo “A Sombra do Vento” e “O Jogo do Anjo” os primeiros.Neste livro as figuras principais são, tal como em “A Sombra do Vento”, Daniel Sempere e Fermín Romero de Torres, uma das personagens mais ricas e inspiradoras desse livro, e é em torno do passado sombrio e enigmático de Fermín que se desenrola o enredo.
A acção começa num dia frio de Dezembro de 1957, em Barcelona, com a visita de uma inquietante personagem à livraria Sempere e Filhos. O homem misterioso compra “O Conde de Monte Cristo” e deixa-o na livraria com uma estranha dedicatória a Fermín. Este, brincalhão, de piadas acutilantes e corrosivas, tinha dado lugar a um Fermín atormentado por preocupações. Tudo piora quando Daniel lhe mostra o livro e a inscrição que o desconhecido tinha deixado na livraria. Fermín está prestes a casar e, para além dos segredos que o estranho ameaça revelar, não pode preencher os registos paroquiais. Durante a guerra civil fora parar à prisão do Castelo de Montjuic, local que recebeu muitos detidos pela polícia política e do qual poucos saíram com vida. Depois de um plano de fuga bem-sucedido, foi dado como morto, um entrave para que tenha documentos legais. É aqui que se inicia a narrativa de Fermín sobre os tempos na prisão e a amizade que fez lá dentro com David Martín, um talentoso e perturbado escritor…
Como a fasquia estava demasiado elevada, este foi, do meu ponto de vista, o menos bom dos três livros, mas Zafón continua a deliciar-me com a sua escrita fascinante e espero que o último volume traga luz sobre segredos ainda não revelados e me volte a fazer sonhar com o Cemitério dos Livros Esquecidos…

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Barcelona, 1957. Daniel Sempere e o amigo Fermín, os heróis de A Sombra do Vento, regressam à aventura, para enfrentar o maior desafio das suas vidas. Quando tudo lhes começava a sorrir, uma inquietante personagem visita a livraria de Sempere e ameaça revelar um terrível segredo, enterrado há duas décadas na obscura memória da cidade. Ao conhecer a verdade, Daniel vai concluir que o seu destino o arrasta inexoravelmente a confrontar-se com a maior das sombras: a que está a crescer dentro de si.Transbordante de intriga e de emoção, O Prisioneiro do Céu é um romance magistral, que o vai emocionar como da primeira vez, onde os fios de A Sombra do Vento e de O Jogo do Anjo convergem através do feitiço da literatura e nos conduzem ao enigma que se esconde no coração de o Cemitério dos Livros Esquecidos.