segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Livros e Mar: eis o meu elemento! (67)

Confesso que o entusiasmo que senti ao ler a sinopse de “Comboio Nocturno para Lisboa”, um dos maiores best-sellers europeus dos últimos anos, começou a desvanecer-se quando comecei a leitura. Apesar de a narrativa ser sólida e existir um fio condutor evidente, o escritor emprega uma linguagem demasiado pesada. Talvez por Pascal Mercier ser o pseudónimo literário do filósofo suíço Peter Bieri, o romance tem muitos pontos filosóficos sobre a morte, a solidão, a amizade, traumas, frustrações. O tema principal é imaterial, uma viagem em que a personagem principal questiona a sua existência.
Confesso, também, que sempre tive dificuldade em ajuizar conteúdos metafísicos, descobrir a essência das coisas, que é complicado questionar-me sobre as minhas decisões e angústias, que me deprime a introspecção, a descoberta do eu interior. Brincando um bocadinho, é assim como a geometria no espaço, transcende-me…
Apesar das duas confissões supracitadas, não escondo que acabei por gostar do livro. Nota-se que o autor tem alguma falta de conhecimento da realidade portuguesa no tempo do Estado Novo e trata com alguma “ligeireza” o regime salazarista, mesmo que, certamente, tenha feito recolha de dados, mas, tal como eu tenho dificuldade em compreender o impalpável, também se desculpa quem não viveu na ditadura…
A vida solitária e monótona de Raimund Gregorius, o protagonista da história, divorciado e professor de línguas clássicas num liceu em Berna, sofre uma mudança profunda quando um acontecimento insólito o faz largar a sua vida rotineira e partir num comboio nocturno para Lisboa. O encontro, num dia chuvoso, com uma mulher portuguesa que, prestes a saltar de uma ponte, desaparece depois de lhe escrever um número de telefone na testa, é o ponto de partida para a viagem. Evitando que salte, Raimund fica seduzido pela sonoridade das palavras da desconhecida que, questionada sobre a língua que fala, lhe diz ser português. Por casualidade, encontra, numa livraria espanhola, um volume editado em 1975 em Lisboa, com excertos filosóficos, intitulado “Um Ourives das Palavras” do português Amadeu Inácio de Almeida Prado. Tenta, recorrendo a um curso de português, traduzir passagens do livro e, fascinado com o que lê, resolve partir para Lisboa em busca de Prado. Já em Lisboa, descobre que Amadeu, um médico que se opunha ao regime de Salazar, faleceu em 1973, antes da Revolução de Abril. Começa, então, a procurar familiares, amigos e conhecidos que possam ajudá-lo a compreender a complexidade de Amadeu e a conhecer-se a si próprio…
E mais não conto!

Comboio nocturno

A sinopse apresenta uma falha. Amadeu Prado morreu antes da Revolução de Abril e não depois. Julgo que terão confundido o ano da morte com o ano da publicação do seu livro…

Tudo começa numa manhã chuvosa. Uma mulher prepara-se para saltar de uma ponte de Berna. Raimund Gregorius, um banal professor de grego e latim de 57 anos, evita o acto desesperado e fica surpreendido com o som de uma palavra. Português, responde ela, ao ser questionada sobre a língua que fala. Antes de desaparecer da história ainda tem tempo de escrever um número de telefone na testa deste míope professor que descobre, por acaso, um livro de um autor português, Amadeu Inácio de Almeida Prado, intitulado Um Ourives das Palavras. Sem conseguir explicar porquê, entra num comboio para Lisboa atrás deste médico que morreu 30 anos antes, em 1975, pouco depois da Revolução, numa descoberta do outro que acaba por ser uma descoberta de si próprio.
Amado pelos pobres que atendia de graça no seu consultório, Amadeu passa a ser rejeitado pelo povo no dia em que aceita tratar o "Carniceiro de Lisboa", assim conhecido por ser chefe da polícia política. Integrará posteriormente a resistência contra o regime de Salazar.
Porquê Portugal? Porquê a ditadura de Salazar? Estas são as perguntas mais feitas a um autor que admira Pessoa, "esse gigante da literatura", há mais de 20 anos, e escreve um livro do desassossego com a escrita de Prado a assemelhar-se aos textos do poeta português. Pela sua cultura, pela sua atitude de outros tempos, Raimund precisava de um ambiente de século XIX e Lisboa é a grande cidade europeia que mais se aproxima pelo seu aspecto, pela sua topografia, afirma Pascal Mercier, para quem a principal razão para escolher Lisboa e Portugal prende-se com o pai de Prado, um juiz em funções durante uma ditadura, mas que não trabalharia sob as ordens de Mussolini, Hitler ou Franco. "Salazar era diferente. Era um intelectual brilhante, era muito inteligente, culto, de uma brutalidade mais subtil que poderia seduzir pessoas como o juiz Prado e só nas ditaduras se dão as condições necessárias para tratar os problemas morais no contexto político."

Imprevisto singular: Quando Mercier/Bieri esteve em Lisboa pela altura do lançamento do livro, em 2008, fez um périplo pelos locais do romance acompanhado por um jornalista e um fotógrafo do jornal Expresso. Junto ao Arco da Rua Augusta, no momento em que o fotógrafo capta as últimas imagens do escritor, surge das arcadas uma mulher, Comboio Nocturno para Lisboa debaixo do braço. “Desculpe, o senhor é o autor deste livro, não é?” E o autógrafo já não escapa. Mercier sorri, ao ver a leitora a afastar-se, tão incrédula quanto ele. “Coisa incrível, não acham? Quem é que explica acasos destes?” Ninguém. Mas Amadeu de Prado, que na Lisboa ficcional do escritor suíço morreu ali a dois passos, era bem capaz de tentar.

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