Antes de Elena Ferrante se tornar um sucesso no panorama literário
mundial, já a minha filha A. se tinha antecipado e recomendado insistente e
entusiasticamente o primeiro volume da tetralogia. A saber: A amiga Genial, História do Novo
Nome, História de Quem Vai e de Quem Fica e História da Menina Perdida (a quem
interessar, recomendo as sinopses da Relógio d’Água).
Elena Ferrante continua a ser um pseudónimo, pois a autora nunca
aceitou revelar a sua identidade, embora muitos tentem, conjecturando,
descobrir quem é realmente Ferrante, e se é mulher ou homem. Pessoalmente, é-me
indiferente, não tenho curiosidade em olhar “pelo buraco da fechadura”, não
tenho particular interesse pela vida da autora.
Elena Ferrante terá dito, numa entrevista via mail para Il Corriere
della Sera, “não me arrependo de meu
anonimato. Descobrir a personalidade do escritor através das histórias que
propõe, das suas personagens, dos objectos e paisagens que descreve, do tom da
sua escrita, não é mais nem menos que um bom modo de ler”. Estou de acordo. O que ganho em saber se viveu na
Grécia, se é casada, se tem filhos, se é tradutora ou se enriqueceu? Nada, o
que me desperta interesse é a obra, o resto são suposições que não acrescentam
mais-valia ao trabalho literário. Li há tempos uma frase que julgo oportuno
mencionar: O autor morre quando põe o
ponto final. O leitor nasce a seguir. Na muche! E como leitora desta
tetralogia tenho uma palavra para a definir: obra-prima!
A tetralogia foca-se na vida
de duas personagens, a narradora, Elena Greco (Lénu ou Lenuccia), e a sua amiga de infância, Raffaella Cerullo (Lina
ou Lila), ambas nascidas, em 1944, num bairro pobre de Nápoles, e acompanha-as
durante sessenta anos. No entanto, todas as outras personagens que as rodeiam,
com as suas diferenças e semelhanças, são relevantes na narrativa e acabamos por nos
envolver, numa intimidade fascinante, na vida destas famílias.
Italian women and children in Naples by George Rodger, 1944
Antes de nos levar para
Nápoles do pós-guerra, Elena Ferrante inicia o primeiro volume da tetralogia
com um prólogo sobre um acontecimento no tempo presente. Rino, filho de
Raffaella Cerullo, telefona a Elena Greco informando-a que a sua mãe tinha
desaparecido sem deixar rasto, levando roupas, sapatos, livros, fotos, documentos,
enfim, tinha desaparecido com todo o seu passado . Elena sabia que esse era um
antigo desejo de Lila, “queria
volatizar-se; queria que todas as suas células desaparecessem; que dela não
fosse possível encontrar nada”.
E como a conheço bem, ou pelo menos creio que conheço, tenho como
certo que encontrou a maneira de não deixar em parte nenhuma deste mundo nem um
cabelo. Lila está a exagerar, como é costume, pensei. Estava a dilatar
excessivamente o conceito de rasto. Agora, aos sessenta e seis anos, não só
queria desaparecer como também apagar toda a vida que deixara para trás. Senti‑me
deveras irritada. Vamos ver quem vence, desta vez, disse para mim. Liguei o
computador e comecei a escrever os pormenores da nossa história, tudo aquilo
que me ficara na memória.
Foram as palavras finais do
prólogo que despertaram a minha curiosidade. O que poderia ter acontecido
anteriormente para Elena Greco querer impedir ardentemente a ambição da sua
amiga de infância? A partir daqui fiquei viciada em Ferrante e cativada pela
narrativa até à última página do quarto volume, pelo qual esperei ansiosamente.
Numa escrita simples, mas intensa e cortante, a autora aborda e explora questões
como a condição feminina numa sociedade patriarcal, a desigualdade entre homens
e mulheres, o casamento, a maternidade, a sexualidade, a sobrevivência das
classes desfavorecidas, a riqueza intelectual, os movimentos sindicalistas, as
ideologias e radicalismos políticos, a Camorra, enfim, um leque magnífico e
diversificado de temas em que as personagens se envolvem e me envolveram.
A leitura desta tetralogia
foi um verdadeiro carrossel de emoções antagónicas e absorventes, difícil parar
de ler e largar as personagens com as quais me identificava, diferenciava, indignava,
zangava ou comovia. Fechei o quarto e último volume com tristeza, como se perdesse
para sempre a intimidade que, ao longo da narrativa, me prendeu a Lénu e a Lila.
Fechei o quarto e último volume há um
ano e meio e até hoje não consegui encontrar um livro que me atraia, ou por
outra, nem tenho conseguido ler, o que me deixa muito apreensiva… Penso que nunca
mais na vida vou ler nada tão bom, que não vou encontrar leitura superior a
esta. Foi, sem dúvida, a leitura mais marcante da minha vida. Quanto a Elena
Ferrante, a ilustre desconhecida, está num patamar único e, seja ela quem for,
deixou-me a pensar com os meus botões: Caraças! Como é que ela conseguiu escrever
estes livros tão fora de série? Bravo! Tiro-lhe o chapéu, indiscutivelmente
magistral!
Nota: o entusiasmo à volta da
tetralogia foi de tal ordem que chegámos a fazer uma tertúlia familiar numa
esplanada…
4 comentários:
Subscrevo! ;)
Também tenho andado sem vontade de ler e julgo que a "culpada" é Ferrante. Não creio que a autora venha a escrever algo tão bom como esta tetralogia, mas nunca se sabe!
Entretanto comecei a ler um livro que a R. me deu. Chama-se "O Mundo Ardente", de Siri Hustvedt. Pela originalidade já me começou a cativar... e um dos temas também está relacionado com a desigualdade entre homens e mulheres, neste caso no mundo artístico.
Deixo aqui uma passagem do livro: "Todo o trabalho intelectual e artístico tem mais sucesso na mente da multidão, quando a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se encontra uma pila e um par de tomates."
Olá, como adorei o excerto do livro ;) fui ler a sinopse e deixou-me curiosa, particularmente quando diz que O Mundo Ardente é um puzzle complexo e rigoroso, irónico e lúdico, que o leitor vai montando de capítulo em capítulo, decifrando pistas e mistérios.
Uau, pistas e mistérios no meio intelectual nova-iorquino? Explora a desigualdade de sexos? Interessa-me! Será que Siri Hustvedt pode fazer-me esquecer Ferrante?...Humm, não sei, hesito, mas quiçá...
De Siri Hustvedt li Verão Sem Homens e gostei bastante, mas, até hoje, Ferrante continua a ser a minha escritora de eleição!
Obrigada pelo comentário.
Já eu encerrei em Agosto de 2016 e estive aproximadamente os 6 meses seguintes a ler banda desenhada.
Sei que a tetralogia Napolitana terá sempre um lugar especial e que voltarei seguramente a estes livros. Quanto à escritora posso dizer "preferir sempre a obra ao mestre", o resto é a espuma dos dias.
Curei-me como faço sempre, voltando a Virgínia Woolf e a Iris Murdoch, que por acaso também teriam um pipi ;)
Respondo ao teu comentário com alguma ironia porque depois de Elena seguiram-se quatro pipis...yeyyy!!! Camilla Lackberg, Isabel Allende, Joana Bouza Serrano e Siri Hustvedt. Confesso que andei a mastigar as páginas de Camilla e até hoje continua na mesa de cabeceira aguardando disposição para lhe pegar. Não questiono a literatura policial desta escandinava, mas eu não estava para ali virada...Dizem que é a Agatha Christie que veio do frio, mas, para mim, Christie é incomparável. "A Duquesa de Mântua" e "O Amante Japonês" foram livros que me agradaram bastante, embora nenhum deles me tenha entusiasmado ao ponto de pensar que, seguramente, voltarei a eles. Quanto a "Aquilo que eu Amava", de Siri Hustvedt, fiquei a meio e acabei por arrumar o livro. Não estava psicologicamente preparada para ler ligações emocionalmente turbulentas, a pain in the ass...aguardo, também, disposição para o ler. Curiosamente, comecei a ler, há dois dias, "A Louca da Casa", de Rosa Montero, isto é, o quinto pipi, yeyyy! Não é para te agradar, mas não é que eu também virei a louca da casa e estou a adorar? Era deste conteúdo que eu estava a precisar, até meto post-its nas páginas!!! Como não quero que acabe rapidamente, alterno com outro que tenho na pilha da mesa de cabeceira, "Dez Livros que Estragaram o Mundo (e mais cinco que também não ajudaram nada)". A Rosa conseguiu despertar em mim o velhinho interesse pela leitura, e ainda dizem que "de Espanha nem bons ventos nem bons casamentos"... balelas!
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