sábado, 23 de abril de 2011

Livros e Mar: eis o meu elemento! (39)

Confesso que há autores, como Paulo Coelho ou Nicolas Sparks, ambos com obras que são autênticos fenómenos literários, que não me despertam a curiosidade, não me motivam, não me cativam, mas não encontro uma explicação consistente. Talvez porque os livros de Paulo Coelho são muito ligados à religiosidade e à magia, assuntos que não me seduzem, e, no caso de Sparks (julgo que um dos autores mais lidos em Portugal e no mundo) porque a fórmula é sempre idêntica, histórias de amor, dramas e paixões. Logo eu, uma romântica incurável, não sou atraída por este autor que apaixona o planeta com a sua escrita doce e sonhadora. Coisas!... Quiçá um dia ainda venha a ser sua fã incondicional...
José Rodrigues dos Santos encontrava-se num patamar entre Coelho e Sparks e não fazia parte da minha lista, sempre em constante actualização, de livros a comprar. Por casualidade, uma colega fez questão de me emprestar “O Anjo Branco” e a verdade é que cada página que virava me ia entusiasmando, revelando-me a sua escrita leve e despretensiosa.

Baseada em factos reais e históricos, a obra leva-nos desde meados dos anos 30 até, sensivelmente, ao 25 de Abril de 1974, encontrando-se dividida em três partes, O Paraíso, O Purgatório e O Inferno, tal como A Divina Comédia, de Dante, embora por ordem inversa. Vou alongar-me um pouco nesta análise porque o livro foca temas que, curiosamente, me interessam sobremaneira.
Na primeira parte do livro, JRS traça, com humor, o nascimento, a infância e a adolescência de José Branco, passados entre Penafiel e o Porto, mostrando-nos a vida religiosa e conservadora na província, que o Estado Novo mantinha na mediocridade. E enquanto o mundo estava em guerra, o autor relata-nos como esse acontecimento afectou Portugal, através das campanhas de racionamento (nos produtos mencionados, fiquei na dúvida se já existiam óleos alimentares, mas…) e da chegada de refugiados que trouxeram novos costumes que escandalizavam o povo português (mulheres nas esplanades e homens sem chapéu…). A viagem da família Branco a Lisboa faz-nos voltar atrás no tempo, trazendo-nos à lembrança a evolução das obras públicas do Estado Novo, como a estrada marginal de Lisboa para Cascais, o Instituto Superior Técnico, o Aeroporto da Portela, o Hospital de Santa Maria ou o Estádio Nacional, e leva-nos a visitar a Grande Exposição do Mundo Português, uma enorme operação de propaganda do regime salazarista.
O protagonista é educado pelo pai, capitão reformado, que o ensina a reger a sua conduta pessoal e profissional seguindo sempre os valores morais, ajudando-o a diferenciar entre ter uma boa vida e ter uma vida boa.
O Purgatório, passado nos anos 60, apresenta-nos José Branco, formado em medicina e casado com Mimicas, a sua primeira namorada, já em Moçambique, descrevendo como era a vida dos portugueses em África. Confrontado com inúmeros problemas sanitários, teve a ideia de criar um serviço revolucionário, o Serviço Médico Aéreo, exercendo também a actividade no Hospital de Tete, onde chegou a director. Um dia, explicou a escolha da roupa branca que usava como médico: “O branco é sinónimo de paz e humanidade. É disso que precisamos” e fiel ao que aprendera nas aulas de deontologia na Faculdade de Medicina dizia “um homem bom gosta das pessoas e usa as coisas. Um homem mau gosta das coisas e usa as pessoas”.
Quando rebenta a Guerra Colonial, torna-se perceptível que, não só havia um grande desconhecimento no Continente sobre o que se passava nas colónias, mas também um grande desconhecimento por parte dos próprios habitantes das colónias sobre o que se passava na guerra. A guerra em Moçambique começou em 1964, mas manteve-se durante uns anos nas províncias de Cabo Delgado e Niassa. Só em 1968/69 começou a avançar para Tete, onde em 1969 se iniciou a construção da barragem de Cabora Bassa, um projecto de desenvolvimento da região lançado pelo Estado português.
Na última parte, O Inferno, depois da guerra se estender à província de Tete, a actividade da guerrilha aumentou, com ataques às colunas militares e pressionando os aquartelamentos portugueses. O conflito agravou-se em 1970 depois da Operação Nó Górdio, a maior e mais dispendiosa campanha militar portuguesa em toda a guerra, com o objectivo de destruir importantes bases da Frelimo. Neste ambiente de guerra, José Branco continua o seu papel humanitário, tratando todos aqueles que precisavam, fossem eles soldados ou guerrilheiros. Dois anos depois, com esta força política já misturada com a população e na sequência de uma emboscada sofrida pelos militares portugueses nos dias anteriores, além de algumas manifestações da guerrilha na região de Tete e muito próximo da cidade, sucederam-se vários massacres como resposta das forças portuguesas. O mais conhecido seria o de Wiriyamu, levado a cabo por comandos portugueses em Dezembro de 1972. O ataque de comandos da 6.ª companhia, às aldeias de Wiriyamu, Chawola e Juwau, com o nome de código Operação Marosca, foi antecipado dois dias porque a PIDE/DGS tinha informações seguras da presença do comandante da Frelimo da zona operacional de Tete. No massacre de Wiriyamu morreram centenas de civis, entre homens, mulheres e crianças. No dia seguinte, José Branco foi à aldeia, testemunhou a dimensão da chacina e sentiu o dever moral de redigir um relatório, contando a verdade dos factos. O inspector da DGS tentou dissuadi-lo, mas sem sucesso.

[...] O inspector da DGS prendeu um cigarro entre os lábios e acendeu-o com um isqueiro prateado.
“Quero pedir-lhe que não conte a ninguém o que viu”, disse enquanto exalava uma baforada cinzenta.”O senhor fez o seu trabalho, aceito isso perfeitamente. Agora mantenha o bico calado”.
A ordem fez José sorrir sem vontade.
“O senhor sabe muito bem que sou obrigado a escrever um relatório sobre tudo o que faço enquanto médico. Considerando a gravidade do que observei, diria que a minha obrigação é acrescida pelas circunstâncias”.
"A sua obrigação é com a pátria".
“Talvez, mas não só. É,
porém, também por causa da pátria que tenho de escrever o relatório”.[…]

José acabou por ser desterrado para Nampula, onde toma conhecimento das revelações feitas pelos padres da Missão de São Pedro sobre o massacre. O episódio dantesco, abafado e desmentido tanto em Portugal como em Moçambique, acaba por ser denunciado no jornal The Times e na imprensa internacional, poucos dias antes da visita de Marcelo Caetano a Londres, há muito programada para a celebração dos 600 anos da aliança Luso-Britânica.
O Anjo Branco, uma meditação sobre ter uma boa vida e ter uma vida boa, uma reflexão sobre o bem e o mal. Gostei e recomendo.

[…] a tropa especial e alguns elementos da DGS, a secreta do Estado, matam em tempo recorde 400 pessoas. Procuram a base do inimigo, mas encontram aldeias indefesas, apenas com mulheres, crianças e velhos desarmados. Fazem-se experiências. Um soldado abre o ventre de uma mulher grávida e mostra-lhe o sexo do feto. Outros colocam os canos das armas na boca de recém-nascidos, à laia de biberão. E as donzelas, depois de satisfazerem o ímpeto dos defensores da pátria, são abatidas. Foi apenas mais uma atrocidade praticada pelo exército colonial, mas esta teve parangonas na imprensa estrangeira porque missionários a denunciaram à opinião pública internacional. […]
Massacres em Moçambique, Felícia Cabrita, A Esfera dos Livros, 2008

No seu pequeno avião, José cruza diariamente um vasto território para levar ajuda aos recantos mais longínquos de Moçambique. O médico que chega do céu vestido de branco transforma-se numa lenda no mato. Chamam-lhe "o Anjo Branco".
Mas a guerra colonial rebentou e um dia, no decurso de mais uma missão sanitária, José cruzou-se com aquele que se tornou o mais aterrador segredo de Portugal no Ultramar.
Inspirado em factos reais e desfilando uma galeria de personagens digna de uma grande produção, "O Anjo Branco" afirma-se como o mais pujante romance jamais publicado sobre a Guerra Colonial - e, acima de tudo, sobre os últimos anos da presença portuguesa em África.

Sem comentários: