12 de Setembro – 2ª parte
Já lá vão quase oito meses da visita a Barcelona e ainda não é desta que termino as anotações sobre as minhas experiências e lembranças.
Entre o último “post” (no distante dia 9 de Dezembro de 2009) e este, muitas coisas aconteceram. Levei um “murro no estômago” e fiquei sem vontade de me centralizar nos três dias fantásticos que passei na capital catalã.
Retomei os registos, que me dão prazer, embora o andamento seja muito lento. Enfim, como diria a R., “um romance não se escreve de um dia para o outro” e este pequeno arquivo de memórias servirá para mais tarde recordar…
Acabei esse último “post” afastando-me, com alguma melancolia, do Park Güell. Todos os adjectivos que eu possa utilizar para qualificar este recinto tão aprazível, terão uma característica comum, aplaudir a obra harmoniosa e encantadora de Gaudí.
Parece, no entanto, que nem sempre assim foi. No livro de Carlos Ruiz Zafón, O Jogo do Anjo, a personagem principal dirige-se a uma vivenda, situada na esquina da Calle Olot com a San José de la Montaña, que contemplava como uma sentinela o fantasmagórico, solitário e sombrio recinto do Park Güell. Três anos antes, por morte de Gaudí, os herdeiros do conde Güell tinham vendido a urbanização deserta, que nunca tivera outro habitante a não ser o seu arquitecto, à Câmara Municipal por uma peseta. Esquecido e abandonado, o jardim de colunas e torres fazia agora lembrar um éden maldito.
Acredito que terá sido assim, mas, esse éden maldito transformou-se num dos locais mais agradáveis da cidade de Barcelona e num paraíso celestial e abençoado…
Prometendo a mim mesma voltar, retomámos o caminho de volta à estação de metro de Lesseps, descendo a Carrer de Larrard, rua fértil em pequenas tiendas de recordações. Fizemos questão de entrar em todas porque tudo nos chamava a atenção. Comprei resmas de postais. Hesitante, encontrava em cada um, um pormenor diferente, e a minha satisfação aumentava proporcionalmente ao monte de postais que se ia acumulando no fundo do meu saco…
O nosso próximo objectivo: a maior, mais original, mais visitada, mas inacabada obra do prodigioso “arquitecto de Deus”, o extraordinário Temple Expiatori de la Sagrada Família.
Em 1883, Gaudí assume a responsabilidade do projecto, que tinha sido iniciado um ano antes por Francisco de Paula del Villar y Lozano, alterando as plantas iniciais. A este projecto dedicou os últimos quarenta e três anos da sua vida.
Em 1884, tornou-se oficialmente o arquitecto do templo e começou a assinar os projectos de arquitectura, na altura, os planos do altar da Capela de S. José, cuja construção foi, ironicamente, bastante rápida. A partir daqui nunca mais houve rapidez na obra. Gaudí preferia o trabalho manual ao trabalho feito pelas máquinas porque, dizia ele “não tenho pressa, o meu Cliente pode esperar”.
Era este o aspecto da obra, em 1908.
Já em 1909, paralelamente à obra, Gaudí construiu as Escolas Provisórias da Sagrada Família, destinadas aos filhos dos trabalhadores do templo e também às crianças que faziam parte da paróquia. Mesmo no edifício das escolas, podemos ver a aversão que Gaudí tinha por cantos e arestas, substituindo-os por curvaturas harmoniosas.
Quando Gaudí morreu, em 1926, apenas uma das torres da Fachada da Natividade estava completa.
Nos primeiros tempos, choveram entusiásticas doações mas as obras paralisaram quase completamente durante a I Grande Guerra e, mais tarde, durante a Guerra Civil. Em 1936, os republicanos atacaram a Sagrada Família, incendiando a cripta, a escola e os arquivos. Nesse atentado perderam-se os planos e os cálculos originais, apenas sobrevivendo, felizmente, as maquetas de gesso, que possibilitaram a continuação das obras de acordo com a ideia original. Depois da Guerra Civil, o templo viria a ser invadido pelos franquistas que, entre outros prejuízos, profanaram o túmulo de Gaudí, encarado por eles como um símbolo do nacionalismo catalão.
Até aos nossos dias, os trabalhos têm prosseguido a um ritmo muito irregular e moroso.
Como já tive ocasião de referir, em outro “post” dedicado a Barcelona, estive nesta cidade no início da década de 70. Ao visitar a Sagrada Família, o meu pai, completamente hipnotizado pela grandiosidade do templo inacabado, não se cansava de dizer “isto é uma obra fabulosa”. Eu, nos meus crédulos 14 anos, fascinada também pelo colosso, pensei que seria um local a revisitar dali a meia dúzia de anos, quando a obra estivesse concluída…
Voltei ao fim de quase quarenta anos, continua a ser um enorme canteiro de obras…
Passaram-se 127 anos desde o início da construção deste templo gigantesco. Conseguimos, facilmente, constatar a diferença de tonalidade na pedra.
Espera-se que o monumento fique pronto nas próximas duas décadas e prevê-se que no final da construção terá início a restauração da parte mais antiga!...
A percepção que tenho, actualmente, desta obra-prima do modernismo, não é a mesma da minha adolescência e o entusiasmo de há quarenta anos desvaneceu-se um pouco.
Apesar de indiscutivelmente imponente e de todos os magnetizantes pormenores arquitectónicos, a Sagrada Família não deixa de ser bizarra e perturbadora…e, muito sinceramente, incomodou-me e intimidou-me toda aquela verticalidade tenebrosa…
A Fachada da Natividade parece feita de areia mole, da beira do mar, como se uma mão gigantesca a tivesse feito escorrer. A Fachada da Paixão, construída após a morte de Gaudí, não deixa de ser, também, estranha e inquietante, com todas aquelas figuras de traços duros e semblantes carregados e sinistros. Pelo que pude averiguar, a Fachada da Glória, em construção, será descomunal e majestosa.
Como é difícil descrever, por palavras, a tetricidade e a austeridade que menciono, por oposição à originalidade e à grandiosidade, ficam aqui as imagens que, como é usual dizer-se, valem mais do que mil palavras.
A verdade é que ninguém fica indiferente perante as obras de Gaudí e perto do Temple Expiatori de la Sagrada Família sentimo-nos reduzidos à nossa insignificância e pequenez humana…
Tal como Gaudí, é muito provável que também eu não veja o projecto acabado, no decurso da minha vida…mas trilhei la ruta del modernisme…
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